segunda-feira, 31 de março de 2008

MOSQUETEIROS CONTRA PIRATAS

PUBLICADO NA FOLHA DA REGIÃO NO DIA 22 DE JULHO DE 2007


Escrever sobre obras de outros tempos, filmes de Vincente Minnelli, Sam Peckinpah ou Orson Welles, não é só uma maneira de se redescobri-las como também serve para confrontá-las com o que vem sendo feito no cinema atualmente.

Poderia abordar o último capítulo da saga “Piratas do Caribe”, mas enquanto continuarem a vender essa série como o exemplo do que há de melhor no gênero de aventura, é preferível retomar o filme “Os Três Mosqueteiros”, versão do cineasta George Sidney para a história de Alexandre Dumas, que chegou sorrateiramente nas locadoras.


“Piratas do Caribe” é admirado por muitos pelo seu deboche aparentemente inovador. Seria um produto bacana por não levar a sério sua premissa? Por fazer uma auto-ironia do uso exagerado da computação gráfica? Ou por ter Johnny Depp completamente à vontade no papel do pirata esquisitão Jack Sparrow?

Os pontos supostamente fortes do filme é, na verdade, seu calcanhar de Aquiles. Por trás da falta de seriedade narrativa se esconde uma inabilidade por parte do realizador, Gore Verbinski, de que rumo tomar com o filme - não sabe se alopra de vez ou se satisfaz o público ávido por uma conclusão na historieta.


Por trás da ironia no uso dos efeitos visuais há um filme que não sobrevive sem eles, que no fundo é refém disso tudo. A atuação de Johnny Depp, por sua vez, reflete a zorra que é o filme: ora parece um zumbi punk saído do filme “Dead Man”, de Jim Jarmusch, ora parece uma versão piorada do Edward Mãos de Tesoura e em boa parte do filme parece um dos personagens afeminados de uma fábula kitsch de Pedro Almodóvar.

Contra tudo o que “Piratas do Caribe” representa e em prol de tudo o que ele se propõe existe o filme “Os Três Mosqueteiros”, realizado em 1948 que, com seu vigor estético e narrativo, supera a trilogia que atualmente monopoliza os cinemas brasileiros com seu terceiro capítulo.


O cineasta George Sidney era um dos especialista em filmes musicais. Para não perder o tato, contou com a participação do ator e dançarino Gene Kelly (consagrado por “Cantando na Chuva”) na pele do espadachim D’Artagnan, cavalheiro que se une aos três mais habilidosos mosqueteiros do reino francês para combater as conspirações elaboradas pelo cardeal Richelieu (feito pelo eterno vilão, Vincent Price).

A performance de Gene Kelly é uma esbofeteada na atuação de Depp. Kelly constrói um D’Artagnan que de tão farsesco possibilitou ao cineasta fazê-lo contracenar com cenários exageradamente pintados e mais falsos que ele sem nenhum pudor de querer impor qualquer tipo de realismo.

A cena na qual Gene Kelly, montado em um cavalo com pinta de pônei, ruma para Paris em uma estrada parecida com algum desenho colorido da MGM faz lembrar a cena introdutória do personagem Jack Sparrow no primeiro exemplar de “Piratas do Caribe”, em que Depp aportava o barco se equilibrando na ponta da proa jocosamente, deixando claro o tom do personagem.


Enquanto a entrada de Depp destoa do tom imposto por Verbinski - o ator faz humor da mítica do personagem, mas a cena é conduzida como parte integrante de um suntuoso épico -, em “Os Três Mosqueteiros” a presença do gênero musical colabora muito para que as coisas fluam.

Não há números musicais ou cantorias no filme de George Sidney, mas a graciosidade e o acrobatismo nos movimentos partem de uma coreografia devedora do gênero musical.


A exploração de todos os objetos e espaços que envolvem as cenas, características do gênero, impõe o ritmo de aventura sem com isso abdicar do abstracionismo que envolve o filme.

Abstracionista porque os atores e os cenários não servem para reforçar uma aparência de realidade, são simplesmente cores e formas que se movimentam num ritmo e expressão próprios do cinema. Não há valor psicológico atribuído ao fato de um dos mosqueteiros ser um bêbado, do outro ser vaidoso e de D’Artagnan ser um acrobata.


George Sidney atribuí valores estéticos a essas características, nada mais. O mosqueteiro vaidoso é uma cor que destoa das outras quando se movimenta para enfrentar os inimigos, o bêbado é o corpo que se movimenta cautelosamente, faz com que as cenas não fiquem num único tom, e o acrobata é o responsável por convergir e intensificar as diferenças, é o centro da película.

“Os Três Mosqueteiros” é um filme que de certo modo antecipa a afirmação feita pelo crítico francês Michel Mourlet, que dizia ser o cinema um olhar substituto do nosso a oferecer um mundo correspondente aos nossos desejos.


Enquanto um filme como “Piratas do Caribe” se constrói sob o pretexto de brincar com sua condição de produto de gênero e se asfixia num exercício assexuado de cinema, “Os Três Mosqueteiros” é um filme que mantém a virilidade, capaz de fazer o espectador ver verdade em toda a aparente falsidade, a verdade do cinema.

Quando Gene Kelly observa, às escondidas, uma moça se trocando, ele está ali a representar a virilidade do espectador. Ele observa, suspira e delira. O prazer de D’Artagnan é também o prazer do espectador. O prazer dos olhos.

sexta-feira, 28 de março de 2008

EASTWOOD FILMA O MITO E SUA DESTRUIÇÃO

PUBLICADO NA FOLHA DA REGIÃO NO DIA 15 DE JULHO DE 2007


Um soldado caminha como um zumbi por um campo devastado, em meio a barulhos de explosões e gritarias de homens que pedem socorro. A câmera acompanha esse caminhar com um giro em volta desse homem, um giro tão desnorteante quanto o olhar perdido e o caminhar sem direção dele. O que é um herói? Há heroísmo na guerra? São com essas perguntas que Clint Eastwood se debate no transcorrer de “A Conquista da Honra”.

Iwo Jima é uma ilha do Pacífico, mas é também o palco - palavra que dá conta do espetáculo criado pelo governo americano em cima dos seus heróis - no qual soldados japoneses tentam evitar a invasão de soldados norte-americanos, que procuram ali conquistar uma posição estratégica em solo de um dos principais aliados da Alemanha, no meio da Segunda Guerra Mundial.


Diferente de “O Resgate do Soldado Ryan”, dirigido por Steven Spielberg (co-produtor do filme), o filme de Eastwood não concentra esforços em filmar suntuosas batalhas à beira-mar, o que interessa ao cineasta é o ato em que alguns soldados estiraram a bandeira norte-americana após pulverizar um trecho da ilha. Não apenas o ato em si, mas a foto em que esses poucos soldados levantam a bandeira. A foto percorreu todos os EUA, estampada em capas de jornais, fazendo com que os cidadãos americanos vissem a batalha como vencida, coisa que possibilitou ao governo do país justificar mais gastos com a guerra.

Mas o que há de heróico em levantar uma bandeira? “O único heroísmo na guerra é a sobrevivência”, diz o sargento interpretado por Lee Marvin em “Agonia e Glória”, de Samuel Fuller. É esse pensamento fulleriano que Eastwood parece cultuar em seu filme.


Não há heroísmo como também não há vilões - os japoneses são filmados como se fossem invisíveis, ora vemos apenas suas armas ora vultos e corpos desfocados. O heroísmo é imaginário, útil para esconder, por trás de uma fachada vitoriosa, toda a brutalidade, o sangue jorrado e as vidas sacrificadas na guerra.

O filme não tem uma narrativa linear, mas se desenvolve em três tempos: a do filho de um dos “heróis”, que coleta informações com alguns veteranos remanescentes do episódio de Iwo Jima para escrever um livro, a narração do escritor sobre a excursão dos “heróis da bandeira” e as reminiscências da guerra que assombravam os “heróis” enquanto eles excursionavam.


As três histórias parecem se chocar quando, em uma festa de homenagem aos heróis, um deles escolhe uma calda de morango para cobrir um doce em formato de soldados erguendo a bandeira, como na foto eternizada. A imagem mitificada da superioridade norte-americana é encoberta por um liquido vermelho e espesso, igual ao sangue.

Em um só gesto, o heroísmo simbolizado no doce e a rudeza que envolve a realidade da guerra presente no sangue, simbolizado pela calda vermelha de morango. Com esse gesto que o filme de Eastwood se aproxima tanto das fábulas homéricas de John Ford - o homem que sempre imprimiu o mito ao contar a verdade - quanto da iconoclastia de Samuel Fuller - o homem que visitava a História sempre pela porta do fundo. Em um só movimento o mito e sua destruição.


Clint Eastwood é um cineasta contemporâneo, mas consciente de que o cinema do presente se faz ao olhar para o passado. Assim como os discursos atuais proferidos pelas autoridades norte-americanas são meras réplicas dos discursos do passado (“os homens que sacrificam suas vidas para zelar pela segurança da nação”), Eastwood busca no passado, no cinema de Ford e Fuller, o antídoto para enfrentar esses caquéticos discursos.

terça-feira, 25 de março de 2008

SUPERMAN IV: A OVELHA NEGRA DA SÉRIE

PUBLICADO NA FOLHA DA REGIÃO NO DIA 08 DE JULHO DE 2007


O quarto episódio do Superman não figura entre os melhores filmes da saga do herói. Para muitos, não possui a grandiloqüência do primeiro. Para outros, faltou o toque humorístico que caracteriza o segundo e, principalmente, o terceiro filme.

O primeiro da série eternizada por Christopher Reeve é considerado o melhor mais por ser o marco inaugural do que pelo resultado do filme propriamente. Richard Donner, diretor do filme de 1978, parecia entender que o termo “épico” designava alongar cada cena mais do que o necessário.

Por respeitar demais a reputação do material, o cineasta fez do herói um Cristo intocável e de sua história um evangelho. O resultado é um tanto cambaleante, falta humor ao personagem. Em suma, falta-lhe vida.


Os dois filmes seqüentes são superiores ao trabalho de Donner. Richard Lester assumiu a batuta da direção e o que fez com o super-herói não foi muito diferente do que tinha feito com os Beatles no filme “Os Reis do Iê-Iê-Iê”.

O frenesi provocado pelos Beatles na Inglaterra dos anos 60 não é muito distante do absurdo da popularidade que envolve um super-herói vestindo um uniforme azul e capa vermelha que voa por uma metrópole. As peripécias e as batalhas de Christopher Reeve no segundo e no terceiro filme se desenvolvem sob a lógica do escracho.

O quarto capítulo é sim a ovelha negra da “família” - foi inclusive produzido pela companhia Cannon Films, responsável por lançar a temerosa carreira de Chuck Norris e distribuir os primeiros trabalhos de Jean-Claude Van Damme -, mas é também o único filme da série que conseguiu equilibrar a imponência epopéica num ritmo cômico.


O argumento do filme “Superman IV - Em Busca Da Paz”, de 1987, é sobre uma campanha de desarmamento nuclear mundial liderada pelo super-herói em pleno desenrolar da Guerra Fria. Para o interprete do herói, Christopher Reeve, são questões iguais a essa que o personagem deveria enfrentar.

Há ainda um sub-tema envolvendo a mudança de linha editorial do jornal Planeta Diário, transformado em tablóide sensacionalista. Questão que, ironicamente, comenta o fato da Cannon Films - responsável por filmes oportunistas e de baixa qualidade artística - encabeçar a produção do filme.

A direção ficou a cargo do prolífico Sidney J. Furie, que atualmente é mais conhecido por bater o cartão nos filmes atuados por Dolph Lundgren. Sendo Furie um cineasta de ação, ele não faz do Superman um personagem shakespeariano, cheio de psicologismos como no primeiro filme, e também não o transforma num Jerry Lewis, o comediante dos filmes seqüentes.


Seu Superman é superficial, atribuição que possibilita tanto o personagem deslizar pelo humor sem que, com isso, perca sua força como figura mítica. Ele é uma figura translúcida, como translúcido é o filme “Superman IV”, obra que deixa passar a luz do personagem sem que se perca sua magia intrínseca. Um filme que se atém às aparências, ou seja, à essência do cinema.

É nesse ponto que “Superman IV” se assemelha muito aos filmes dirigidos por Vittorio Cottafavi para o gênero peplum. Peplum é o termo que se refere às saias usadas pelos personagens musculosos, como Hércules, nos filmes épicos italianos em que os heróis enfrentavam terríveis vilões para salvar lindas mulheres.

Como nos filmes de Cottafavi, um simples gesto e movimento de câmera conduzem o espectador a uma jornada iniciada em um cenário limitado (uma taverna num dos filmes do italiano, uma fazenda no filme do super-herói) que logo é estendida para terrenos como o mar, o céu ou o inferno. Sidney J. Furie tem pleno senso de escala, como nenhum outro cineasta que coordenou a saga.


Esse senso de escala que faz do cineasta o único da série hábil em fazer de um momento cômico um grande evento épico e de um grandioso momento um instante humorístico.

A cena em que Clark Kent e Superman marcam compromissos num mesmo lugar e na mesma hora é a prova do talento de Furie. Entre trocas de uniformes, corridas e vôos em um prédio, o cineasta faz de uma piada visual um tanto desgastada um momento único, em que a comédia e a aventura estão intimamente conectadas, em que nem uma nem a outra se sobressaí.

A habilidade que o cineasta provara dominar se expande das desventuras do prédio para um confronto com o vilão do filme, o Homem-Atômico (forte e com uma vestimenta exagerada, como se integrasse realmente um peplum). No confronto, os oponentes usam a Estátua da Liberdade como espada, um prédio como escudo e o globo terrestre como arena.


Para completar esse peplum sem homens de saias, não poderiam faltar também as lindas mulheres indefesas. Sendo uma magricela Margot Kidder a interprete da Louis Lane, a encorpada Mariel Hemingway foi acrescida para enriquecer o quarto filme da saga. Episódio que Sidney J. Furie dirigiu como se estivesse na Itália a refilmar “Hércules e a Conquista de Atlântida”.

domingo, 23 de março de 2008

TORRE DE BABEL

PUBLICADO NA FOLHA DA REGIÃO NO DIA 01 JULHO DE 2007


Os filmes do mexicano Alejandro González-Iñárritu são como aqueles livros açucarados vendidos em bancas de jornal ou como as novelas de Manoel Carlos: se você viu um, você viu todos. Alguns podem alegar que o realizador é um autor, por isso seus filmes mantêm a mesma estrutura de mosaico que se entrelaçam, a inflação dramática de momentos triviais da vida e o fetichismo pela degradação humana.

São características fortes e presentes desde o seu primeiro longa-metragem, o superestimado “Amores Brutos”, e que sufocam esse seu último trabalho, o globalizado “Babel”.

Um ônibus de turistas passa por uma região montanhosa do Marrocos. Nas montanhas, crianças marroquinas testam um rifle comprado para matar chacais. Uma americana que estava no ônibus é atingida por um tiro. Dessa “coincidência” nascem outras histórias ao redor do mundo, que vão se entrelaçando através de tantas outras “coincidências” proclamadas pelo roteiro do filme.

Qual a relação que há entre uma japonesinha surda-muda que não consegue perder a virgindade com as dificuldades de uma empregada latina em atravessar a fronteira entre EUA e México para ir ao casamento de seu filho? Essas pessoas não só estão conectadas por serem pessoas comuns vivendo os dramas ordinários da vida como são obrigadas a estarem envolvidas, de alguma forma, ao acidente no Marrocos.


Já viram esse filme? Em “Amores Brutos”, de 2000, um acidente automobilístico promovia o encontro de três narrativas distintas como também desencadeava mudanças na vida dos personagens envolvidos. “21 Gramas”, de 2003, foi uma espécie de refilmagem do anterior, em que novamente um acidente envolvendo três pessoas serviu de ponto de partida para González-Iñárritu.

Será o cineasta mexicano realmente um autor? Enganador talvez seja a definição mais apropriada. González-Iñárritu não tem um estilo, tem cacoetes. Não tem temas que lhe interesse, tem discursos. É por aí que se distinguem os gênios dos tolos, os homens das crianças.

O cineasta, que se propõe a filmar uma Babel - a cacofonia de vozes e idiomas, a desordem e a simultaneidade de dramas, os ruídos que resultam dessas ligações, enfim, a complexidade do mundo -, consegue aqui apenas privilegiar as viradas do roteiro em detrimento a um entrecruzamento primordialmente cinematográfico para dar ordem ao caos.

É muito fácil deslocar a narrativa de Marrocos para o México e forjar uma correlação dramática entre pólos tão extremos utilizando um corte que leva o espectador de um deserto para outro. É muito fácil deslocar de um desses lugares, para contrastar e/ou aproximá-lo do Japão, utilizando os prédios permeados de publicidade eletrônica que existem nas grandes cidades do país.


Dar ordem ao caos é um dos dilemas cinematográficos, um desafio colocado aos cineastas interessados em investigar qualquer tema. Mas dar ordem ao caos está longe de significar padronizar didática e simploriamente as diferenças culturais das etnias envolvidas no projeto - coisa que o cineasta faz em “Babel” ao transitar pelas várias estórias utilizando uma única trilha sonora ou quando intensifica numa mesma escala as choradeiras e os dramalhões dos personagens.

Dar ordem ao caos é organizar o espaço cênico, os movimentos da câmera dentro desse espaço e trabalhar as modulações do tempo com o intuito de preservar ao espectador a experiência caótica vivida pelos personagens. Dar ordem ao caos não é transformar palatável uma obra, é simplesmente fazer o caos se manifestar e ser assimilado pelo público.

O que fica dos filmes de González-Iñárritu é a eterna sensação de estar à frente de meros rascunhos ou recortes mal trabalhados da vida como ela é, ora emulando o “realismo” à lá Manoel Carlos ora o “escapismo” dos livros de banca de revistas. Resultado ínfimo para uma arte que em algum dia do ano de 1985 vislumbrou a seqüência final do filme “O Ano do Dragão”.


“O Ano do Dragão”, de Michael Cimino, terminava com a imagem congelada do intolerante policial polaco sorrindo abraçado a uma chinesa e cercado por negros, italianos e chineses. Isso após invadir um funeral chinês para prender todos os moradores.

Nessa seqüência, orquestrada pela sinfonia “Resurrection”, de Gustav Mahler, o cineasta celebrava um instante de utopia, de ressurreição, na qual todas as etnias foram colocadas no mesmo quadro para contemplar uns segundos de trégua, ou seja, o abraço e beijo entre dois “inimigos” - o policial preconceituoso e a mulher por qual ele se apaixonara, a repórter chinesa.

A utopia ciminiana torna qualquer esforço de acumular e acavalar histórias e o inchaço de dramas proposto por González-Iñárritu em mera perfumaria. Com o plano final do filme de Cimino é possível separar os homens das crianças, os gênios dos tolos. O cineasta de “Babel” se enquadra no segundo time.

quinta-feira, 20 de março de 2008

CINEASTA SOB SUSPEITA

PUBLICADO NA FOLHA DA REGIÃO NO DIA 24 DE JUNHO DE 2007


Sidney Lumet foi um dentre muitos cineastas que firmou carreira nos anos 70 para, nas décadas seguintes, ser esquecido pela indústria hollywoodiana. Diretor iniciado no teatro e na TV, Lumet é reconhecido pelo seu estilo pragmático.

O pragmatismo do cineasta é evidenciado:

a) pelo seu gosto por narrativas transcorridas em tempos curtos. “Um dia de Cão”, narrado praticamente em tempo real, leva a característica ao paroxismo;

b) o interesse de sempre fotografar Nova York do angula mais cru. Das ruas e o distrito policial fétidos do consagrado “Serpico” ao passeio dos amigos que vão ao funeral de um conhecido no obscuro “Grotesca Despedida”;

c) a completa ausência de clichês ao narrar histórias sobre profissionais que geralmente são estereotipados nas telas do cinema, seja o detetive psicopata interpretado por Sean Connery em “Até os Deuses Erram” ou a família de ladrões de “Negócios de Família”.


Por sempre impregnar seus filmes com um senso de urgência, por manter uma afeição pelo folhetinesco, muitos são os que hoje vêem com ressalvas as obras de Lumet, taxando-o como cineasta de um repertório só. Como muitos artistas, Lumet passou do céu ao inferno, de “unanimidade” entre os críticos se tornou um “cineasta sob suspeita”.

A desconfiança é tanta que o último filme do cineasta, “Sob Suspeita”, não chegou às salas de cinema, indo direto para as prateleiras das locadoras. Com o talento questionado e posto em cheque, “Sob Suspeita” chega em boa hora para que se faça uma reavaliação da obra de Sidney Lumet.

A revisão, porém, não parece se restringir ao “além da tela”, pois vendo o filme tem-se a impressão de que o cineasta inflou-o de vários elementos que permeavam muitos de seus filmes anteriores, como se quisesse fazer também um balanço de sua carreira.


A história é inspirada num caso real, do mafioso Giacomo DiNorscio (interpretado por Vin Diesel) que dispensa seus advogados e faz sua própria defesa num julgamento envolvendo outros 19 acusados, serviu de ponto de partida para Sidney Lumet.

Está presente o espaço cênico limitado do tribunal, que serviu de locações em filmes anteriores do cineasta, como no “O Veredicto”, e o caldeirão fervilhando com figuras divergentes (mafiosos avaliados por um júri mesclado por pessoas de etnias distintas), num clima sufocante muito semelhante ao do primeiro filme do diretor, “Doze Homens e uma Sentença”.

Essa “coletânea” tem ainda como referência o herói quixotesco. Se Giacomo DiNorscio não é honesto como o policial de “Serpico”, que vive a trabalhar em meio a uma corja de corruptos, ou louco como o jornalista de “Rede de Intrigas”, que resolve falar tudo o que pensa na televisão, ao menos ele preserva aquela inabalável fé nas suas convicções, característica tão marcante no cinema de Lumet.

O malandro Giacomo se gaba de nunca ter delatado seus amigos à polícia. Passou mais da metade de sua vida na cadeia por causa disso. Talvez seja apenas um sujeito idiota. Talvez seja um inglório herói resistente. Ao final, o sonho do personagem é mesmo ser amado por todos aqueles que o cerca - no caso, os policiais e presos que vivem com ele na cadeia, local onde cumpre uma pena de 30 anos.


A história do personagem do filme se assemelha muito à história de Sidney Lumet. Giacomo é anacrônico para as novas leis mafiosas, assim como Lumet é tido como um dinossauro em Hollywood. São obsoletos, mas conhecem as regras e sabem ditar o ritmo do jogo, colocando-se sempre à frente de seus adversários.

Giacomo sabe que não há muita diferença entre polícia e mafioso. Sabendo também que um julgamento é tido como um palco para as atuações de promotores e advogados, utiliza do seu humor malandro para convencer o júri do impossível, ou seja, de sua inocência.

Lumet não fica atrás. Sabe que Hollywood se tornou num incrível circo de variedades e, com isso, transforma o cenário do tribunal num verdadeiro picadeiro, facilmente identificável pela forma como dispõe os outros dezenove réus em cena, como se cada sessão do julgamento fosse o dia de abertura de um cassino.

O resultado final da reavaliação do balanço feito por Lumet com “Sob Suspeita” termina com saldo positivo, pois confirma que as previsões dos detratores estavam erradas.


É certo que Lumet não é cineasta de uma nota só, tendo trafegado por adaptações ousadas de peças teatrais importantes, como “Equus”, e de obras literárias consagradas, como “Assassinato no Orient Express”. Chegou até a refilmar, corajosamente, o badalado filme “Glória”, de John Cassavetes.

“Cineasta de poucas notas”, talvez seja a definição mais equilibrada e menos diminuidora do seu talento. O que “Sob Suspeita” prova é que mesmo revisitando velhos temas, cenários e personagens, o estilo folhetinesco e lancinante de Lumet, por mais caduco que pareça ser, ainda supera boa parte dos filmes norte-americanos que são feitos atualmente.

domingo, 16 de março de 2008

QUANDO UM CINEASTA AMA UMA ATRIZ

PUBLICADO NA FOLHA DA REGIÃO NO DIA 17 DE JUNHO DE 2007

Há séculos acredita-se na influência que certas mulheres exerceram sobre o trabalho de muitos artistas. Tal crença faz com que o mito das musas, criado pelos gregos (“as filhas do céu e da terra, habitantes de rios, montanhas e campos, anunciadoras de todas as formas de pensamento”), seja retomado de tempos em tempos. No cinema esse mito se materializou nas películas de vários cineastas. Orson “Cidadão Kane” Welles é um exemplo.


“Quando eu resolvo me fazer de bobo, nada consegue me deter” é a narração de Michael O’Hara que dá início ao filme “A Dama de Shanghai”, de Orson Welles. O fazer-se bobo é a menção do personagem, um marinheiro irlandês, à paixão por Elsa Bannister, uma mulher estonteante e perigosa. Essa narração/confissão é a mais bela declaração de amor que o cineasta Orson Welles poderia fazer a sua esposa, a atriz Rita Hayworth. Para ela o cineasta entregou o papel da mulher fatal, para ela o cineasta dedicou o filme.


Os cabelos longos e escuros que deram fama à Rita Hayworth dão lugar ao corte radical de um louro radiante. Esse ato incentivado por Welles não foi uma resposta de um prodígio mal-criado ao sistema hollywoodiano, que o invejava e que cultuava o estilo tradicional de sua diva, mas sim a demonstração de que um bom artesão pode se arriscar em algumas manobras para tornar ainda mais bela sua escultura. A escultura de Welles era sua mulher.


O cineasta faz o irlandês que vive a caminhar nas sombras e que, de repente, encontra em um parque uma luz que irradia, que o seduz. Essa luz irradia de uma carruagem que O’Hara persegue, após fazer a confissão inicial. Nesta carruagem repousa a beleza, o charme irradiante da loura fatal Elsa Bannister.


O’Hara não demora a perceber que Elsa é uma mulher perigosa - seja por sua formação “duvidosa” em Macau e Shanghai, considerados por O’Hara os piores lugares do mundo, ou pelo total controle que ela parece ter sobre si ao recusar o cigarro oferecido por ele, além de guardá-lo, como recordação, de um modo extremamente sedutor. Ele sabe, mas não resiste pelo mesmo fato que não resistimos à beleza de Hayworth no filme: ela hipnotiza.


A forma como o diretor a coloca em cena e a filma faz com que ela personifique aquela beleza maléfica, que leva os homens ao esgotamento, ao fundo do posso. Um tipo de beleza destrutiva e destruidora, uma beleza impossível de se esquecer.


A paixão, ou convicção estética, de Welles o faz, logo no início, situar o esplendor de Rita Hayworth e o fazê-lo se destacar de todo um mundo decadente (em preto e branco) que a cerca: O’Hara anda por um parque na escuridão, dá de encontro com Elsa e adentra em sua carruagem; a luz se concentra nela, enquanto Welles permanece nas sombras.


E assim a luz permanece até o final da projeção, pois Welles dedica todo o filme a ela: quando as cenas são ensolaradas, Welles a coloca vestida em um maiô preto, dando destaque a sua pele branca e seus cabelos claros; quando as cenas são noturnas, a veste de branco. Ela é o espectro que invade a abertura da íris do cinematografo.


O ápice, porém, se encontra no final da projeção, quando Rita Hayworth encontra-se com Orson Welles para a acerto final da tumultuada relação que os envolve no filme (uma teia de crimes, traições e paixões). Em um parque de diversão, especificamente na sala de espelhos, Welles vê o desfecho trágico de seu súbito romance com Hayworth: em meio a multiplicados reflexos de Hayworth, ela desfalece e morre.


Em luto, O’Hara caminha ao final do filme aliviado e completamente vazio: ele pode retomar sua independência, mas nunca mais tornará a contemplar o irradiar, o esplendor da beleza de uma deusa. De Elsa Bannister, de Rita Hayworth.


Foi o primeiro e único filme de Orson Welles com Rita Hayworth. Foi também o penúltimo filme em terreno norte-americano dele, que depois partiu em exílio pela Europa. O caminhar perdido de O’Hara também o fora o caminhar perdido de Welles até meados da década de 50 - quando retornou aos EUA para fazer “A Marca da Maldade”.

sexta-feira, 14 de março de 2008

FILMES DE MESTRE E DISCÍPULO SÃO LANÇADOS EM DVD

PUBLICADO NA FOLHA DA REGIÃO NO DIA 10 DE JUNHO DE 2007


Um é considerado como dos maiores cineastas que surgiram no cinema moderno norte-americano, o outro é tido como uma das maiores revelações do cinema asiático dos últimos anos. O que esses dois artistas, de duas tradições culturais diferentes, têm em comum é o interesse em refletir à cerca da violência, que irrompe tanto de grupos marginalizados quanto de órgãos responsáveis por estabelecerem a ordem.

O norte-americano é Sam Peckinpah. Conhecido por ter realizado, entre a década de 60 e 70, os faroestes violentos e desmistificadores “Meu Ódio Será Sua Herança” e “Pat Garrett & Billy The Kid”, o cineasta tem finalmente lançado no país um de seus mais depreciados filmes: “Comboio”, de 1978, seu penúltimo trabalho.


O cineasta chinês é Johnny To. Despontou nos anos 80 e conta com uma filmografia de trinta filmes realizados, mas só foi reconhecido internacionalmente quando apresentou no festival de Cannes, em 2004, o longa-metragem “Breaking News - Uma Cidade em Alerta”. O filme que agora chega às locadoras chama-se “Eleição - Submundo do Poder”, de 2005, e é um de seus trabalhos mais aclamados.

O mestre em um filme aparentemente decadente, o pupilo indiscutivelmente no auge de sua forma:

Em “Comboio” Peckinpah transformou seus caubóis em caminhoneiros que, tão desajustados quando os pistoleiros, vivem a fugir de homens da lei interessados em extorqui-los dinheiro. A mudança de postura com relação ao material talvez seja o principal fator do insucesso do filme, notando que o fatalismo amargurado de Peckinpah nunca combinaria com o humor descarado, proposto desde início, dessa aventura inconseqüente, inspirada em músicas de caminhoneiros.


Mas àqueles que pensam “Comboio” se tratar de um filme nulo na filmografia do diretor, vale notar que mesmo realizando um pretenso veículo para impulsionar a carreira de Kris Kristofferson como ator e sendo famosas as estórias das bebedeiras homéricas e o crescente desinteresse do cineasta pelo projeto, está nas imagens do filme o afeto de Peckinpah por paisagens e personagens desolados - as pocilgas à beira de estradas, as prostitutas e os errantes que por elas caminham - e também a habitual igualdade com que o cineasta vê figuras tão duais quanto os “homens da lei” e os “bandidos”.


Sobre o filme de Johnny To, “Eleição”, pode-se dizer que a influência de Peckinpah está presente desde a cena inicial, quando crianças são vistas brincando de pega-pega enquanto os pais discutem sobre os rumos dos negócios da máfia chinesa. Com essa cena, que se assemelha muito à cena inicial do filme “Meu Ódio Será Sua Herança”, onde crianças brincam de torturar escorpiões, To parece se apoiar no discurso de Peckinpah ao mostrar que a violência é inata ao ser humano.


Não para por aí. A forma como Johnny To organiza a narrativa, sobre o processo de alternância de poder nas poderosas tríades chinesas, igualando esse processo eleitoral a qualquer outro tipo de eleição política oficial - com cotas generosas de subornos, chantagens e atos de violência -, aproxima-o da visão crítica com que Peckinpah via as instituições norte-americanas (em “Comboio”, por exemplo, os policiais são pintados como meros caipiras desleixados).


Mas onde Peckinpah esbarrava em dificuldades para trabalhar com o “burlesco”, To parece ter facilidades em trabalhar numa chave cômica. Há uma cena, logo no início de “Eleição”, onde fica evidente essa habilidade do cineasta: um capanga come uma colher de porcelana após ser incentivado pelo seu chefe, que lhe dava uma bronca (a intervenção, porém, não se inscreve como “alívio cômico”, acaba é por reforçar o caráter ameaçador do personagem e desestabiliza as expectativas do espectador com relação à narrativa).


“Comboio” pode não ser o melhor exemplar de Peckinpah, mas sua vitalidade em conduzir a dramaturgia de um filme permanecia intacta - os caminhões em constante movimento acompanhados por uma câmera tão obstinada quanto os veículos, em meio à zooms e panorâmicas.


Johnny To, por sua vez, passa de uma promessa e se firma como um dos mais talentosos cineastas de sua geração, fazendo dos espaços que habita - sejam as tríades (“Eleição”) ou a televisão que acompanha a caça de gato e rato entre policias e bandidos (“Breaking News”) - a atualização da reflexão de um tema tão caro ao seu mestre Sam Peckinpah.


“Eleição” não deixa de ser também um filme sobre a herança de To. Sendo a trama do filme sobre a manutenção da gerência das tríades e sendo essa manutenção realizada pelo tradicional gesto de passar adiante um simbólico cetro ao sucessor, Johnny To estaria aqui a assumir o cetro que antes pertenceu à Peckinpah, como cineasta preocupado em refletir as formas como a violência se manifesta e os modos de encená-la.