segunda-feira, 30 de junho de 2008

OS MELHORES DO ANO DE 2007

PUBLICADO NA FOLHA DA REGIÃO NO DIA 30 DE DEZEMBRO DE 2007


Não foi um ano ruim para o cinema, mas também não foi um ano de grandes revelações. Os melhores filmes foram realizados por cineastas veteranos: Clint Eastwood mostrou, mais uma vez, porque é o último grande herói americano ao fazer os dois filmes sobre Iwo Jima e o francês Claude Chabrol manteve seu admirável ritmo de um filme por ano com “A Comédia do Poder”.

Foi também 2007 o ano da reafirmação de algumas promessas, como o cinema de James Gray, que deixou de ser o promissor realizador de “Caminho sem Volta” para firmar sua maturidade com “Os Donos da Noite”, e Sofia Coppola, que mostrou não ser somente a filha do diretor Francis Ford Coppola, mas uma artista com visão de mundo e cinema com sua versão para a vida de Maria Antonieta.

Neste ano, Abel Ferrara fez as pazes com o Brasil ao ter seu filme “Maria” exibido em nosso circuito comercial, enquanto o francês Alain Resnais provou que sua carreira não se resume aos “Hiroshima, meu Amor” e “O Ano Passado em Marienbad”.

Em uma lista de dez, os escolhidos foram:

1) Os Anjos Exterminadores


Noel Rosa disse certa vez ser a mulher o único sinônimo para o samba. Se a frase fosse atribuída a Jean-Claude Brisseau, realizador do filme, ele diria ser a mulher o único sinônimo possível para o cinema.

O que as mulheres escondem? O que esconde o cinema? São perguntas que o filme não se propõe a responder, pois o que interessa ao filme é mergulhar no abismo onde se enfiará o personagem central, o cineasta a fazer um filme sobre os desejos secretos das mulheres.

Nenhuma resposta, pois não há psicologismo que dê conta de tanta beleza que Brisseau impõe a cada cena. O cinema para Brisseau é como as portas pelas quais ele filma a nudez de suas atrizes: uma abertura a aprisionar o homem. O mistério da mulher e do cinema é o que justifica seu arrebatamento, é a graça de seu sensualismo.

2) A Conquista da Honra e Cartas de Iwo Jima


Clint Eastwood a fazer o serviço de arqueologia e antropologia em cima das histórias escondidas por trás da ilha japonesa de Iwo Jima em dois filmes. Um sob a ótica norte-americana, outro sob a ótica japonesa.

No “A Conquista da Honra”, partiu da impressão do mito e sua destruição - o cinema de John Ford e Samuel Fuller - para chegar ao cinema de Howard Hawks, em seu elogio à fraternidade masculina entre os soldados norte-americanos.

Em “Cartas de Iwo Jima” fez o movimento contrário. Procedeu em Hawks ao mostrar o nobre relacionamento entre os oficiais e recrutas japoneses e terminou na aspereza e iconoclastia de Fuller, quando passa a mostrar a tropa americana invadindo o forte japonês.

3) Maria


“Ver não com os olhos, mas com o coração” é o que diz um dos personagens do filme de Abel Ferrara, mas é uma frase que poderia ser atribuída ao próprio cineasta sobre o seu cinema, um cinema de vísceras, de uma passionalidade descomunal.

Em “Maria”, um cineasta lança seu filme sobre a ressurreição de Cristo, a atriz, que interpretara Maria Madalena, é seduzida por sua personagem e não consegue deixá-la enquanto um apresentador de um programa que discute teológica entra em crise após seu filho recém-nascido adoecer.

Essa tríplice narrativa, esse cinema de estilhaço, é o que conduz os homens e a mulher de Ferrara ao reencontro com a fé. Um filme para se ver com o coração, enfim.

4) Medos Privados em Lugares Públicos



Ao longo de sua carreira, Alain Resnais se especializou em filmes-labirintos: no início foram os labirintos da memória com “Hiroshima, meu Amor” ou “O ano passado em Marienbad”, e, recentemente, os labirintos de canções no musical “Amores Parisienses”.

Com seu último filme, o veterano francês investe em labirintos do coração, nas paixões dos personagens errantes que insistem em se distanciarem. Resnais se interessa aqui pelos descaminhos do coração, de amores afastados por um quarto dividido em dois, no início do filme, ou pela neve que se espalha na tela a cada transição das tramas que correm paralelamente. Labirintos que ainda nos fascinam.

5) A Comédia do Poder


Claude Chabrol mantém seu admirável ritmo com este filme. Substituiu elegantemente a perversa visão sobre a alta sociedade francesa de sua obra anterior, “A Dama de Honra”, para se debruçar em uma trama cheia de fraudes, corrupção na política. Enfim, deixou o privado para investigar o público.

6) Em Busca da Vida


O representante oriental da lista. Jia Zhang-Ke é dos maiores talentos surgidos na China. Influenciado pelo cinema de Michelangelo Antonioni, Jia vem refletindo sobre essa China do século XXI que abriu as portas para o capitalismo e a globalização acelerada. Jia ainda se firma como um dos realizadores a fazer bom uso do suporte digital, incorporando-o ao seu trabalho sem cair num experimentalismo estéril.

7) Planeta Terror


Este é o melhor exemplar fílmico de Robert Rodriguez, obra que dá amplitude ao sentido da palavra “política” no cinema. “Manifesto de um cinema inútil” poderia ser definido o filme, vide a obsessão de Rodriguez por elementos que para outros realizadores seriam considerados como mera futilidade: uma metralhadora no lugar da perna de uma mulher, um bandido que foge numa mini-moto, o cozinheiro mal-encarado obcecado pelo tempero perfeito para seu churrasco, etc.

Osama Bin-Laden e guerra nuclear são temas mencionados, mas que passam distante do interesse real do cineasta. “Planeta Terror” é político porque reafirma os valores caros ao cinema do texano, o valor do cinema classe B.

8) Zodíaco


David Fincher deixa de lado o “mundo bizarro” dos seus filmes anteriores e se enfia num ambiente sórdido encoberto pelo clima ameno da Califórnia e o espírito hippie da América setentista. O terror está corrompido por trás da normalidade nesta obra que herda os ensinamentos do suspense deixados por Alfred Hitchcock e Fritz Lang.

9) Possuídos


Um homem e uma mulher presos em uma casa pelo medo do ataque de insetos. Um filme trash? Um filme de conteúdo político evasivo? Certamente a falta de reviravoltas na história e o confinamento do filme no cenário único de um trailer à deriva no deserto afastaram muitos espectadores.

O cineasta William Friedkin não está aqui a fazer uma nova leitura do seu filme mais famoso “O Exorcista”, como muitos pensaram e o título brasileiro para “Bug” (inseto) sugeriu, mas sim preocupado em fazer sua câmera ser possuída pela neurose do casal de personagens. Um filme verdadeiramente perturbador.

10) Os Donos da Noite


James Gray faz um filme tradicional. Tradicional por pregar os valores familiares e também por cultuar um cinema de gênero policial anacrônico, na linha de “Operação França”, dirigido pelo 9º colocado, William Friedkin. Um cinema tradicionalista e personalíssimo, de um olhar muito específico sobre as coisas e pessoas.

domingo, 22 de junho de 2008

O DONO DA NOITE

PUBLICADO NA FOLHA DA REGIÃO NO DIA 23 DE DEZEMBRO DE 2007


A família é tudo no cinema de James Gray. Ela é o tema de sua devoção e o cinema do gênero policial sua vocação.

Era assim em seu primeiro longa-metragem, “Fuga para Odessa”, no qual o assassino profissional feito por Tim Roth deveria cumprir um duro trabalho em seu antigo bairro ao mesmo tempo em que tinha a mais difícil missão de se reaproximar da sua família.

Era assim em “Caminho sem Volta”, filme em que o recém-libertado presidiário interpretado por Mark Wahlberg desejava entrar na linha, mas encontraria exatamente numa linha ferroviária o início de sua nova derrocada criminosa, influenciada por seu primo, Joaquim Phoenix, e seu tio, James Caan.

Por esses rumos o cineasta delineou sua curta carreira. Caminhos traçados também por Joaquim Phoenix em “Os Donos da Noite”, terceiro filme de James Gray.


Phoenix é Bobby Green, o promissor gerente de uma boate mantida por um empresário russo. Ao lado de sua namorada, interpretada por Eva Mendes, ele leva uma vida à margem da sociedade.

Não diferente dos filmes anteriores, a família entra na história como um problema a ser resolvido e como motivo para o descabeçado Bobby assumir finalmente seu papel no seio familiar, aceitar suas responsabilidades.

O pai e o irmão dele são policiais, mas não é tudo. Eles planejam uma imensa apreensão de drogas exatamente na boate gerenciada por Bobby. Acompanhar a família ou seguir junto aos amigos? É esse o dilema que corrói o personagem de Phoenix em seu calvário.


O drama familiar e os dilemas morais mencionam um cinema fora de moda, antiquado. Pode até ser que essa história já foi contada um milhão de vezes, mas é a intensidade que conta a favor do cinema de Gray.

James Gray é um tradicionalista, mas não faz do cinema narrativo um fardo burocrático, não trata com desdém a falta de ineditismo de suas histórias. Ele tem convicção no seu trabalho, na capacidade de fazer de um universo tão batido um sopro de emoções.

Uma boate num filme de Gray não parece ou é uma boate, é uma válvula de escape. Um mafioso não se coloca como tal, ele é um homem comum. Um pai não age como um homem nascido de uma mente brilhante de algum roteirista, ele simplesmente age como um homem nessa condição.


Os cenários e personagens não são meramente figurativos, pois descrevem sentimentos. Paisagens sentimentais e atores que transparecem com suas presenças todos esses tormentos interiores dos personagens.

Não parece ser de interesse de James Gray dar uma lição de valores familiares com seu filme, mas, simplesmente, fazer o público compreender a força da corrente que os unem quando as coisas apertam.

Também não parecem muito importantes questões como “quem são os bandidos e os mocinhos” ou se uma determinada cena de perseguição de carros numa avenida é “eletrizante”.

Se o calvário de Bobby é tudo o que interessa ao filme, o realizador não mede esforços para que o espectador compreenda a posição ocupada pelo protagonista.


A cena onde Phoenix chora ajoelhado nas pernas de sua namorada após visitar seu irmão no hospital, depois dele ter sido baleado, deixa muito claro o que interessa ao cineasta.

Ele não filma a cena por um ângulo a reforçar a comoção do personagem. Nada de close-up em seus olhos lacrimosos. A uma distância considerável, vemos o ator entrar e cair diante da atriz. Entretanto, no momento de sua rendição, a câmera deixa-o de fora do enquadramento para se fixar na inesperada reação de Eva Mendes.

O que tem de importante nesse procedimento, nessa encenação? Ao deixar de investir no choro fácil de seu personagem, o realizador toma uma posição clara: se Phoenix expõe sua preocupação com o estado de seu irmão estando fora do quadro, tal recurso diz muito sobre o próprio papel que ele representa na sua família, o de excluído.


Quando centrado na vida atribulada de Bobby, o filme é narrado de forma insinuante, inebriante: os personagens e a câmera estão sempre em movimento. Quando Bobby vai de encontro à sua família, o filme prima pela imobilidade.

A família é o centro, esse ponto referencial estável, e para Bobby retomar seu papel no seio familiar, ele inevitavelmente deverá tomar a partido desse imobilismo. Deixar de fugir do enquadramento - sua agitação na boate, sua posição fora do quadro na cena do choro - para inscrever-se nele.

São essas especificidades que encantam no cinema de Gray, ou seja, o seu olhar - suas escolhas e o cuidado dado a cada detalhe - que faz seu cinema destoar tanto do que é feito atualmente no cinema industrial e também no independente.

domingo, 15 de junho de 2008

KATHRYN BIGELOW

PUBLICADO NA FOLHA DA REGIÃO NO DIA 16 DE DEZEMBRO DE 2007


Kathryn Bigelow é uma mulher. Uma mulher que faz filmes. Filmes de gêneros tidos como inferiores - do policial ao suspense. Conseqüentemente, ela é uma profissional do cinema triplamente marginalizada.

Quando se faz uma relação de mulheres cineastas, é comum figurar nomes como o da argentina Lucrecia Martel ou de francesas iguais a Catherine Breillat ou Claire Denis.

Enquanto a primeira faz um cinema "artístico", com uma visão crítica de instituições como a Igreja (no filme "A Menina Santa"), as francesas jogam seus olhares sobre a sexualidade (Breillat em "Romance") ou do corpo como uma investigação estético-sensorial (Denis em "Desejo e Obsessão", por exemplo).

São artistas sim, de fácil reconhecimento por seus estilos, suas diferentes perspectivas das coisas, o viés feminino. E o que nos dão os filmes de Kathryn Bigelow? Uma caçada a um assassino psicótico, em "Jogo Perverso" (1990), ou uma perseguição aos assaltantes de bancos no filme "Caçadores de Emoção" (1991)?

Nada de substancial, presume-se. Nada nos moldes do que se convencionou chamar de cinema de arte. Porém, um olhar mais atento sobre os filmes dessa realizadora norte-americana, graduada em pintura pelo Instituto de Arte de São Francisco, nos leva a um cinema que vai muito além da atração por explosões.


O cinema de Kathryn Bigelow tem uma marca, uma identidade muito forte impressa em cada filme assinado por ela. Ser triplamente marginalizada acabou lhe servindo de motivação, pois o sentimento de rejeição move cada fotograma composto pela diretora.

No filme "Jogo Perverso", por exemplo, tem-se exatamente a história de uma mulher recém-formada na academia policial. Mulher que ao vestir a farda é vista com maus olhos por seus companheiros de serviço e também rejeitada quando tenta manter um flerte com qualquer homem após revelar sua profissão. Quer seja o caminho a percorrer, seus personagens estão sempre na contramão.

Na contramão está o personagem de Keanu Reeves no popular filme "Caçadores de Emoção", um policial infiltrado numa gangue de surfistas californianos. No ambiente formal da delegacia, é tido como um vagabundo por andar com pranchas nas mãos; entre surfistas, é visto como um almofadinha.


"Jogos Perversos" e "Caçadores de Emoções" são filmes na filmografia de Bigelow que se aproximam e, ao mesmo tempo, se distanciam.

A sensação constante em seus filmes, de se estar infringindo leis e tratos morais, faz com que as obras de Bigelow detenham um outro olhar sob velhas formas do cinema de gênero.

"Jogo Perverso" é um filme de serial killer. Mas não só. Dá uma nova perspectiva, experiência, sobre ele. Por ter sido feito no auge das políticas neoliberais, no boom das bolsas de valores, o serial killer fatalmente é encarnado na figura de um corretor.

O tom frio da fita, de uma Nova York caótica e paradoxalmente inabitada, é uma visão bem honesta do começo da década de noventa. O outro lado desta moeda é o filme "Caçadores de Emoção". A gélida Nova York é substituída por uma ensolarada Califórnia. O formalismo opressor do azul, dos ternos e gravatas que sufocam em "Jogo Perverso", é trocado por cores quentes numa narrativa mais solta.


Os tons divergem, mas a sensação de não-pertencer a lugar nenhum toma a vida do policial em crise feito por Reeves, assim como tomava a vida da policial feita por Jamie-Lee Curtis. Ao mesmo tempo em que adere ao estilo de vida, ao espiritualismo dos surfistas ladrões que devia observar (liderados por Patrick Swayze), ele não deixa de condenar os atos do grupo.

Kathryn Bigelow representa um cinema que trafega por esse limiar, quase no limbo, entre o cinema industrial hollywoodiano e o considerado independente.

Como a atriz-diretora Ida Lupino, que foi renegada dos livros de história do cinema por trabalhar sob gêneros na era clássica de Hollywood, Kathryn Bigelow tende a ser deixada de lado na listagem de mulheres que fizeram carreira no cinema.


Profissional demais para os padrões "artísticos" ou artista demais para uma profissional da indústria, essas são questões que parecem pouco importar à diretora, que disse certa vez: "se há uma resistência no que diz respeito a mulheres fazerem filmes, eu prefiro ignorar esse expediente por duas razões: eu não posso mudar meu sexo e não consigo parar de fazer filmes".

O que importa são os filmes, esses meros filmes de gêneros que, em suas mãos, se tornam em obras autênticas. Autênticas porque, no fundo, Kathryn Bigelow é tão excluída quanto o policial surfista em “Caçadores de Emoção” ou a oficial de “Jogo Perverso”.

terça-feira, 10 de junho de 2008

HISTÓRIA(S) DO CINEMA EM "O DESPREZO"

PUBLICADO NA FOLHA DA REGIÃO NO DIA 09 DE DEZEMBRO DE 2007

Jean-Luc Godard foi o maior artista do século XX. Não só o maior artista de cinema, mas aquele responsável por fazer de seu instrumento, a câmera, um instrumento para agregar e repensar todas as outras artes.

O realizador acreditava ser o cinema não uma arte da ficção, não um simulacro, e sim a marca impressa do verdadeiro, análoga à imagem do Cristo sobre o sudário de Verônica. Para ele, o cinema é um ladrão do mundo: não cria, e sim retira as coisas do mundo e as acondiciona.

Godard acondicionou a ópera de Bizet nos anos 80 em seu “Prenome Carmen”. Revigorou a música de Bizet transformando Carmen numa jovem sobrinha ladra de um velho doente cineasta, o próprio Godard, que não consegue grana para financiar seu novo projeto.

Com “Passion”, colocou em questão a pintura na história de um cineasta que tenta recriar a luz perfeita de Delacroix e Rembrandt à luz dos conflitos de classe de uma empresa e em “Tempo de Guerra” promoveu o encontre do cinema de Rossellini com o teatro brechtiano numa parábola sobre a estupidez da guerra.

“O Desprezo”, recém-lançado em dvd, é a obra no qual esse empreendimento de Jean-Luc Godard, o de fazer a história do cinema a única história do mundo, encontra-se numa chave mais compreensível - menos ensaística e mais narrativa.


Na série de vídeos intitulada “História(s) do Cinema”, Godard pôs de modo sistematizado sua idéia de como o cinema se relaciona com a história (dos homens, das sociedades, do planeta) e às histórias (às narrativas), elegendo-o como único instrumento capaz de contar a história do mundo, empreender sua narrativa.

Se nos vídeos o pensamento de Godard é sistematizado, em “O Desprezo” a história do cinema e da humanidade está presente na ordem da evidência. Patente inclusive por ser uma narrativa sobre o próprio cinema - começa com o elucidativo plano da câmera se aproximando e mirando para o espectador.

Um escritor francês (Michel Piccoli) é contratado por um produtor norte-americano (Jack Palance) a escrever uma nova adaptação para a obra grega “A Odisséia”, filmada pelo alemão Fritz Lang nos estúdios italianos da Cinecittà.


As histórias das outras artes estão presentes na narrativa epopéica de Homero, odisséia que faz parte tanto do filme dentro do filme como afeta o romance entre o roteirista e sua esposa (Brigitte Bardot), que passa a desprezá-lo, abandoná-lo a cada passo dele pelas filmagens.

A música de Bach ganha uma releitura do compositor Georges Delerue, que dá o tom trágico da obra, as rígidas marcações teatrais dos atores diante da câmera e em meio aos cenários e o desempenho tétrico de Jack Palance muito remetem ao teatro e a tragédia shakespeariana.

As histórias do cinema não ficam atrás, estão nos pôsteres arranhados e espalhados pela Cinecittà de alguns filmes que Godard tanto amou e defendou quando crítico e, ainda, na presença do pioneiro Fritz Lang interpretando a si mesmo e Godard participando, humildemente, na condição de assistente de Lang.


Alguns fantasmas próprios dos filmes anteriores de Godard retornam: Brigitte Bardot é assombrada por Anna Karina, então esposa e atriz do cineasta, ao usar uma peruca de cabelos negros e curtos e imitar alguns traquejos dela.

A crença de o cinema empreende a narrativa do mundo está no uso do terreno regional (as filmagens na Cinecittà) como um meio para se atingir o global. As diversas línguas que são faladas e ouvidas, produzindo o caos usual de uma babel, são assimiladas e organizadas por meio da transparência do recito do cineasta.

O próprio uso recorrente de flash-backs está no filme não para explicar qualquer coisa ao espectador, mas como um meio de fazê-lo compartilhar o desconcerto do roteirista que não consegue descobrir o motivo de sua mulher passar a desprezá-lo.

As histórias do mundo, das histórias das artes e do cinema se aglutinam em “O Desprezo”. Se Godard foi o maior artista do século XX, essa é a obra que reivindica o título.

quinta-feira, 5 de junho de 2008

O CASO GODARD

PUBLICADO NA FOLHA DA REGIÃO NO DIA 02 DE DEZEMBRO DE 2007


Jean-Luc Godard. Não há nome mais temido na história do cinema do que o deste cineasta franco-suíço. O nome dele remete a tudo aquilo que o cinema possa ter de mais insuportável e chato, quando não incompreensível. Basta citar seu nome para uma multidão se dissipar, como se ele encarnasse a imagem do diabo.

Seria Godard um idiota? Um chato? Um gênio? Nem tão ao norte ou ao sul. É certo que ele tenha um pouco de cada uma dessas características, o curioso é notar que ele sempre foi o primeiro a reconhecê-las - em seus filmes, já interpretou um velho doente e descortês ou um homem que esbofeteia o próprio rosto.


O problema maior desse artista são os seus seguidores mais fiéis, até mais que os seus sonsos detratores, pois o “caso Godard” muito se assemelha ao “caso Freud” e até ao “caso Marx”.

Como Godard, Freud e Marx foram pensadores que desenvolveram teorias e raciocínios dos mais estimulantes e fascinantes, idéias que, ao longo dos anos, foram deturpadas por alguns seguidores.

O equívoco não está nas obras de Freud, mas de pseudo-intelectuais que simplificam seu conceito de “interpretação dos sonhos” a truques de adivinhações; o erro não está no Manifesto Comunista de Marx, mas nos supostos esquerdistas que transformaram o texto dele em almanaques para suas propagandas políticas.


O engano também não está com Godard ou nos seus filmes, mas em pessoas que criam comunidades no orkut, intituladas “God-Art” ou “In God-ard We Trust”, espaços onde o debate é substituído por um fervor xiita sobre o trabalho do cineasta. Fervor que assusta e espanta os iniciados.

Sobre o trabalho de Godard, algumas verdades devem ser ditas. A primeira delas é que o cineasta não é nenhum Steven Spielberg, ou seja, não se pode esperar de seus filmes que o Holocausto seja transformado numa Disneylândia - fato ocorrido no filme “A Lista de Schindler” -, pois o cinema não é nenhuma sala de brinquedos.


Outra coisa importante: não se pode achar que vendo seu último filme disponível nas locadoras, como é o caso de “Nossa Música”, todo o emaranhado de citações e reflexões compiladas por ele será compreendido.

Godard, porém, é dos casos raros de artistas que conseguiu manter um empreendimento artístico coerente, tendo construído solidamente uma filmografia que vista plenamente evidencia uma postura cinematográfica muito clara.

Nos tempos em que trabalhava como crítico da revista Cahiers du Cinema, por exemplo, muito por ele foi martelado a respeito de como o cinema documental tende ao de ficção, e vice-versa.


Essa idéia não era somente um pensamento inebriado por um clima ameno de qualquer cafeteria francesa, foi uma obsessão que quando se tornou cineasta resolveu continuar a perseguir.

Em seu primeiro longa-metragem, “Acossado”, não estava em pauta simplesmente prestar homenagem aos filmes policiais B norte-americanos que tanto incomodava o cinema “qualidade” feito na França e tão combatido por Godard.


“Acossado” era um manifesto político e estético por um cinema que Godard ansiava. Era um digno e subversivo policial classe B, mas não só. Também transpirava uma veia ensaística, que caracterizaria muitos filmes seqüentes do realizador, e ainda podia ser visto como um documentário sobre o ator Jean-Paul Belmondo, colaborador fiel de Godard.

No filme “O Pequeno Soldado”, um personagem que empunha uma câmera fotográfica diz ser o cinema a arte da verdade a 24 quadros por segundo. Em uma frase, Godard estava a conciliar-se com a teoria do crítico e mentor André Bazin de ser o cinema a arte da realidade.

Em “Viver a Vida”, Anna Karina faz uma prostituta que chora, em close-up, ao ver Joana D’Arc chorar do mesmo modo na tela do cinema, no filme “A Paixão de Joana D’Arc”. Com planos, imagens aparentemente inconciliáveis, o realizador promoveu a comunhão cósmica de dois filmes, e dois planos, por meio da montagem cinematográfica.


Godard estava ali a esboçar o trabalho que consumiria mais de dez anos de sua vida, entre os anos 80 e 90, na confecção dos vídeos “História(s) do Cinema”.

O fato é que Godard nunca separou o crítico do diretor de cinema. Quando Godard escrevia sobre cinema, ele já estava a fazer filmes e quando passou a realizar filmes, continuou a refletir sobre a arte.

Na verdade, como bem disse certa vez o crítico Inácio Araújo, Jean-Luc Godard é meio que um Chacrinha erudito. Ele não veio ao mundo para explicar, mas para confundir.


Num mundo onde o acúmulo de informações via televisão ou internet, no fim, acaba por favorecer a desinformação generalizada, Godard é o homem dos questionamentos, das reflexões. Das perguntas, não das respostas.

Não há exemplo melhor desse princípio godardiano do que uma cena do filme “Nossa Música”: Godard, interpretando a si próprio numa palestra, permanece em silêncio, perplexo e sem respostas, ao ser perguntado se o digital seria o futuro do cinema.


A única certeza para Godard é a crença de ter sido o cinema, o seu cinema, o único instrumento capaz de compreender e a dispor em uma narrativa a história do homem, a história do século XX.

domingo, 1 de junho de 2008

CINEMA PARADISO, CINEMA DE LAMÚRIAS

PUBLICADO NA FOLHA DA REGIÃO NO DIA 25 DE NOVEMBRO DE 2007


“Cinema Paradiso” mostra o fascínio que a sala escura exerce sobre os espectadores. É também um conto nostálgico de um tempo que não mais existe, em que os beijos encenados na tela escura eram censurados pelos projecionistas em nome da Igreja.

Mas de que cinema nos fala Giuseppe Tornatore, o realizador de “Cinema Paradiso”? De início parece ser o aspecto religioso da arte, ao fazer do menino que se apaixona pela cabine de projeção, Totó, um coroinha.

O filme segue esse itinerário, quer seja ao mostrar a devoção pelo cinema compartilhada por todos os moradores da pequena vila siciliana ou quando Tornatore, em meio a cena do incêndio no cinema, deixa de lado os negativos, poltronas e a tela escura para mostrar a imagem de uma santa queimando.


Há momentos em que o filme parece seguir outra lógica, como no momento em que a população se revolta ao ter sua entrada no cinema impedida ou quando o romance de Totó com a filha de um banqueiro é interrompido. Tornatore trilha uma direção a indicar que a política também está indissociável do cinema.

Caminhos que se revelam como meros fogos de artifício, vendo que a religiosidade dogmatizada do filme o impede de tomar qualquer partido do cinema como também de levar a crença para além da superfície.

Quando vão demolir o prédio do cinema da vila, por exemplo, os moradores, que antes tinham o local como uma Igreja, apenas choram, resignados. Não procuram lutar contra aqueles que tentam impor o fim do cinema, nem acreditam que o cinema possa ressuscitar, como Cristo.


Complacência que não resulta em outra coisa além de um filme que ora clama pelo burlesco (quando Totó vai para o exército), o melodrama (o romance de Totó) ou por uma tragédia grega (o cinema incendiado, as projeções em praça pública e o fechamento do velho cinema).

Clama por diversos gêneros e por diversos filmes não como se traçasse uma historiografia cinematográfica ou prestasse tributo ao cinema caro ao seu, mas como se quisesse agradar à todos os partidos sem antes definir um próprio.

O cinema no filme é nada além do que um truque de mágica infantil, idéia expressada tanto no sermão que Alfredo prega à Totó (que diz “a vida é mais dura que o cinema”) quanto no fato do cinema ir sendo esquecido no filme a cada passo que Totó dá rumo ao amadurecimento.


Tornatore não presta tributo ou organiza uma história do cinema, trata as intenções do seu filme como se fossem suficientes para torná-lo grande. Talvez o fosse caso Buster Keaton não tivesse realizado “Sherlock Jr.” em 1924 ou se Luc Moullet não tivesse caducado “Cinema Paradiso” ao fazer “Les Sièges de l’Alcazar” em 1989.

Tais filmes, ambos médias-metragens, não se sustentam por uma idéia romantizada do cinema. Para Buster Keaton, nos áureos tempos do cinema mudo, fazer uma carta de amor ao cinema era também refletir sobre as potencialidades do humor.


Moullet não é diferente. Para ele, o cinema é a extensão da vida, afirmativa evidenciada na abordagem de um romance impossível entre um crítico dos “Cahiers du Cinéma”, fã dos épicos de Vittorio Cottafavi, e uma mulher crítica da “Positif”, amante dos filmes intelectuais de Michelangelo Antonioni.

Para Keaton, o cinema está um passo à frente da realidade. Em “Sherlock Jr.” o herói pede a mão de uma moça em casamento imitando uma cena de um filme assistido e fracassa ao ver que no filme dentro do filme a imagem do anel colocado na mulher é seguida pelo nascimento de um bebê, procedimento que ele não imitará antes do prazo de nove meses.


Para Moullet a danação do herói cinematográfico é também a danação do homem. O protagonista do filme dentro do filme perde a mulher amada, assim como o crítico fracassa ao tentar conquistar uma moça enquanto desenrola-se o clímax do filme de Cottafavi.

O espírito de “Cinema Paradiso” se resume mesmo à sua cena final. Se nela todos os personagens choram enquanto enterram o projecionista Alfredo e quando o prédio é demolido, o filme é nada além desse choramingo que clama por tempos que não voltarão.


Um choro pela morte de um cinema que nunca esteve vivo. Com “Cinema Paradiso”, Giuseppe Tornatore petrifica o cinema à um estágio ultrapassado mesmo sabendo que a arte, assim como seu personagem Totó, tornou-se adulta.

Talvez a arte não tenha amadurecido, talvez não tenha passado de uma invenção sem futuro (como definiram os criadores do cinematógrafo, os irmãos Lumière), mas essas são questões que não interessam à Tornatore, que prefere apenas chorar o leite derramado.