quarta-feira, 28 de outubro de 2009

CRÍTICA É A ARTE DE AMAR

PUBLICADO NA FOLHA DA REGIÃO NO DIA 20 DE ABRIL DE 2008

Há milhares de clichês sobre a atividade da crítica de cinema e muitos estereótipos sobre os indivíduos que a pratica. Há desde aqueles que pensam ser os críticos meros revoltados até outros tantos que vêem neles seres frustrados que, na impossibilidade de fazerem seus próprios filmes, simplesmente metem o bedelho no trabalho alheio.

"Crítico é o cara que gosta dos filmes que ninguém gosta", diz um. "Crítico é um panaca", diz outro. "Crítico é um nada", completa um terceiro. O mais engraçado de comentários desse tipo é que demonstram que as pessoas parecem conhecer ou ler muito pouco do que esses profissionais escrevem, tratando-os como se fosse uma só voz, ou como se fossem membros de uma gangue que atua num complô para acabar com o prazer do espectador com algum filme.

Crítica é uma atividade tão ingrata quanto qualquer outra profissão, assim como há os bons profissionais e existem os ruins. Não tem segredo nisso. Assim como há bons médicos, têm aqueles que fazem o estilo "açougueiro". Existem críticos que conseguem imprimir em seus escritos um método de trabalho, que passam ao leitor uma experiência de cinema, uma visão capaz de fazê-lo refletir sobre as coisas do mundo, mas também têm aqueles que ficam no ramerrame de comentários que nada dizem, como "oh, como a fotografia do filme X é linda, como tal ator atua bem no filme Y".

Como bem metaforizou certa vez Inácio Araujo, crítico de cinema é um pouco como um juiz de futebol. Se um juiz é o mediador em uma partida de futebol, o crítico de cinema é o árbitro na recepção de um filme, pois ele é o responsável por fazer a ponte entre um filme e o espectador. Assim como um torcedor fica puto da vida quando um juiz assinala um pênalti contra a sua equipe, um crítico de cinema só é bacana até o momento em que não fala mal de um filme adorado por algum leitor.

O papo de desdenhar da atividade crítica por supostamente ser uma atividade relegada aos artistas frustrados também é conversa fiada. "Faz-se crítica quando não se pode fazer arte, do mesmo modo que se é alcagüete quando não se pode ser policial", anotou acertadamente o escritor Gustave Flaubert. Um alcagüete auxilia o trabalho policial sem realmente fazê-lo, com crítica é a mesma coisa, "os melhores críticos são os que efetivamente contribuem para melhorar a arte que criticam", complementa Ezra Pound.

Acredito que os melhores críticos não são aqueles que têm na ponta da língua o nome de um ator quando se precisa saber dele, nem o cara que sabe de cor todos os ganhadores do Oscar. Bom crítico também não é o profissional que dá notas para os filmes como se avaliasse alguma escola de samba em tempos de carnaval. Crítico respeitável não é o que diz pro leitor qual filme ir assistir ou qual deixar de lado, nada disso.

O crítico que pode realmente contribuir para melhorar a arte que critica é simplesmente aquele que trata o leitor como igual, que respeita a sua inteligência e sensibilidade, o homem que, como afirmou o francês André Bazin, "ao invés de trazer uma verdade inexistente numa bandeja de prata, prolonga o máximo possível o impacto da obra de arte".

“Crítica de cinema é a arte de amar”, afirmou Jean Douchet, o “Sócrates da atividade”, segundo Louis Skorecki. A frase dele diz muito sobre a profissão como nenhuma outra, começando que ela descarta a prática como uma atividade de indivíduos odiosos e também ignora a idéia de que os críticos são seres que deixam de experimentar os filmes para lê-los, tendo uma visão extremamente racional, como a de um médico legista que disseca um cadáver.

Eu penso que uma crítica não deve nunca ser escrita como uma visão de cima pra baixo da obra, devendo assim obedecer à intenção de proteger a verdade e o sentido internos de uma obra contra todo e qualquer historicismo, biografismo e psicologismo.

Como Jacques Derrida, acredito que a grande virtude de um crítico está em reconhecer a força da obra, a força do gênio que a cria. Assim, o trabalho do crítico é o de fazer com que a potência do artista resida no texto.

Se crítica é a arte de amar, de prolongar o impacto de uma obra, creio que ela deve ser escrita um pouco como uma carta de amor e, se possível, ir além: tornar-se um testamento, um manifesto político, uma declaração de guerra.

Um crítico luta por convicções semelhantes às que o cineasta português Pedro Costa persegue com os seus filmes, a de “nunca lutar contra o capital, contra a barbárie, contra o país”, nada disso, mas lutar por alguma coisa, “pela memória, pela justiça, pelo amor”.

É claro que a atividade crítica anda desprestigiada, mas o bom cinema também está desacreditado. A verdade é que o público não anda muito interessado nos filmes que vão além do passatempo, aí fica realmente difícil a reflexão competir com a indução, a inquietação confrontar a conformidade, a crítica de cinema se sobressair à publicidade.

CHARLTON HESTON É IMORTAL

PUBLICADO NA FOLHA DA REGIÃO NO DIA 13 DE ABRIL DE 2008


Poucos dias após a morte do ator Richard Widmark, foi a vez de Charlton Heston se retirar de cena. Widmark foi o ator das sombras, ou seja, com o seu riso descontrolado personificou a ambigüidade, a instabilidade e a desconfiança nas telas do cinema. Após derrubar uma senhora das escadas, nunca sabíamos se ele ria por ser realmente um escroto ou se o riso era trágico, significava desespero.

Heston representou o oposto de Widmark. Ele não fazia nos filmes o tipo “cinzento”, indecifrável e misterioso. Heston sempre foi transparente. “Acredito que em algum lugar deve haver algo melhor que o homem”, dizia o explorador espacial, seu personagem na ficção-científica “O Planeta dos Macacos”.

Heston foi algo muito além de um simples homem. Heston foi Ben-Hur, o indômito judeu que conduziu seu povo a se rebelar contra os conquistadores romanos no filme homônimo de 1959. Foi também El Cid, o comandante da resistência espanhola contra os invasores mouros, no filme com o mesmo nome do herói, de 1961.

Incorporou, ainda, Moisés, aquele que conduziu os escravos a se libertarem do reino tirano do Egito, na refilmagem do épico “Os Dez Mandamentos”, realizado por Cecil B. DeMille em 1956, e pintou a Capela Sistina, como Michelangelo, em meio a diferenças artísticas com o Papa da Igreja Católica, no filme “Agonia e Êxtase”, de 1965.


Até quando fez um reles policial mexicano no filme “A Marca da Maldade”, dirigido por Orson Welles em 1958, ele não era só mais um homem entre tantos outros, mas um ser superior em sua integridade profissional que o destacava da corrupção do meio ao qual se inseria.

Charlton Heston foi mais do que um herói do cinema, mais do que um ator de épicos. Um ator épico! Não era ele tão grandioso quanto os filmes que realizou, mas eram os filmes que deveriam estar à sua altura. Heston era um ator “larger than life and screen” (maior que a vida e a tela).

Recentemente, muita coisa foi mostrada ou falada na tentativa de macular sua imagem do cinema, como revelar sua defesa em causas tão estúpidas quanto às do partido republicano do presidente George W. Bush - a guerra no Iraque - ou do direito do cidadão norte-americano em portar armas - o ator foi, inclusive, presidente da “Associação Nacional do Rifle”.

Porém, esses mesmos que acusam o ator “disso e daquilo”, como o covarde vigarista Michael Moore, diretor do filme “Tiros em Columbine”, no qual mostrava Charlton Heston como um senil senhor defensor de uma causa tão nefasta quanto das armas, se esquecem que, quando jovem, Heston arrastava seus papéis heróicos para fora da tela:

Carregou a faixa “Todos os homens nascem iguais” ao lado de Martin Luther King na Marcha pelos Direitos Civis nos anos 60 e esteve ao lado do prodígio e obstinado Orson Welles quando o estúdio queria montar o filme “A Marca da Maldade” à revelia do diretor.


John Charles Carter, o homem Charlton Heston, porém, não me interessa tanto. Sua imagem, sua presença no cinema é tão imaculada quanto à de um santo. Podem dizer que era um ator de pouco repertório, que só fez papéis bíblicos, épicos, etc.

A verdade é uma só. Heston nunca pareceu se esforçar muito para interpretar tais papéis porque, de certo, ele realmente era aquele ser ideal, “melhor do que o homem”, um ser tão grandioso e monumental quanto os filmes que fazia sob a direção do DeMille. Um aristocrata do cinema, enfim.

John Charles Carter morreu, mas Charlton Heston é imortal. Quando recebi a notícia de sua morte, por exemplo, estava revendo “O Planeta dos Macacos”. E, por lá, ele ainda está bem vivo, a repetir frases do tipo: “tire suas patas imundas de mim, seu macaco sujo!”. Sempre, um nobre.