sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

UMA RISADA POR MINUTO

PUBLICADO NA FOLHA DA REGIÃO NO DIA 02 DE MARÇO DE 2008


Quando perguntado sobre o motivo de colocar o personagem do ator Tony Randall para tocar todos os instrumentos da famosa fanfarra da 24th Century Fox na abertura do filme “Em Busca de um Homem”, Frank Tashlin respondeu que queria fazer um filme que provocasse o riso mais depressa do que qualquer outro.

A cena do filme e a resposta de seu diretor são lembradas aqui porque algo muito parecido com isso acontece no início de “Os Simpsons - O Filme”, quando um dos personagens cantarola a fanfarra do estúdio estando no meio da logomarca. Será que os produtores queriam provocar o riso mais rápido possível?

Após a espera de quase duas décadas pelo primeiro filme da série de animação mais famosa da televisão norte-americana, os criadores de “Os Simpsons” procuraram não decepcionar os fãs e fizeram do primeiro longa-metragem uma obra que fosse um pouco além da idéia de um bom episódio alongado.

Diferente de outros filmes baseados em seriados animados, o filme dos Simpsons não foge dos padrões estabelecidos nas dezenove temporadas, mas também não é construído com uma história de estrutura mais “cinematográfica” que faz o desenho perder sua qualidade original.


Se no “Beavis e Butt-Head detonam a América”, Mike Judge, o criador da série que foi ao ar na MTV nos anos 90, precisou fazer a televisão dos irmãos adolescentes ser roubada para que eles desgrudassem dela e não passassem o filme inteiro a ver e comentar clipes, em “O Simpsons” nenhum pretexto a mais existe para que o filme funcione.

Na verdade, o longa-metragem parece funcionar seguindo a lógica: “oh, vamos fazer do filme nada muito diferente do que se faz na televisão, mas se um filme é para ser tratado como um grande espetáculo, vamos engrandecer o que já fizemos nos episódios, dar às piadas uma nova dimensão”.

“Uma risada por minuto”, é o que parece ser o objetivo do filme. Meta atingida quando na abertura se vê um dos personagens cantarolando a fanfarra do estúdio seguido pelas piadas metalingüísticas com toda a família Simpsons vendo no cinema um longa-metragem da série Comichão e Coçadinha (“Que bobagem gastar dinheiro no cinema com um negócio que se pode ver de graça na TV”, diz Homer), passando aos créditos do filme que reprisam os da própria série - com Bart escrevendo na lousa que não irá ver o filme em cópia pirata -, etc.

Como já conhecido na série, a trama aqui é nada além de um pretexto. Semelhante a um filme de Hitchcock, que fazia da história um pretexto para o suspense, a história em “Os Simpsons” é uma desculpa para o humor.


A desculpa do filme são os problemas ambientais enfrentados na cidade de Springfield. Desta questão atual, como usual na série, milhares de outras peripécias e aloprações surgem para mostrar que a questão ambiental não era o único alvo.

Tudo é piada em “Os Simpsons - O filme”, cada cena existe menos para fazer qualquer sentido narrativo do que para fazer o espectador se mijar de rir e, talvez, chacoalhar um pouco alguns conceitos morais, pilares políticos e filosóficos estabelecidos nessa era tão politicamente correta.

Há piadas politizadas, como as sobre a incompetência do presidente norte-americano - claramente inspirado no ator/governador Arnold Schwarzenegger -, ou acerca do engajamento ambiental de Lisa e seu namoradinho irlandês (que “não é filho do Bono”, como ele mesmo diz), mas também não faltam piadas abobalhadas, como as que envolvem o porco-astro de uma campanha publicitária e a nudez de Bart.

Como nos habituamos a ver na série, o filme “Os Simpsons” faz humor de tudo para no fim não deixar nada de pé. Se uma risada por minuto era o objetivo, meta nem um pouco fácil de obter vendo a dificuldade de manter o padrão elevado dos episódios após dezenove anos de exibição semanal na TV, o filme foi bem-sucedido na empreitada.

domingo, 14 de dezembro de 2008

CINEMA, ARTE INÚTIL OU SEM FUTURO?

PUBLICADO NA FOLHA DA REGIÃO NO DIA 24 DE FEVEREIRO DE 2008


É comum quando alguém adjetiva como “velho” um filme realizado há pouco mais de uma década. Porém, essa é uma qualidade definida mais pela disposição dos filmes nas prateleiras das vídeo-locadoras do que uma sentença aplicável na avaliação da obra enquanto expressão artística. Arte não tem prazo de validade determinado em rótulos, tampouco segue o esquema das estações do ano - como disse Peter Bogdanovich, “existem apenas os filmes vistos e os não-vistos”.

Um filme é considerado velho quando está pra venda na gôndola de “semi-novos” porque as pessoas tendem a enxergar o cinema como mero passatempo. Não é tido como uma arte nobre como a literatura, por mais que os ingressos já não sejam tão populares quanto nos primórdios.

O que vale para o público é mais a pipoca, os amassos na poltrona, o passatempo de final de semana do que outra coisa. Cinema é um evento, antes de qualquer coisa, e isso que o torna uma arte “impura”. Impura porque além de ser uma arte que se apóia em todas as anteriores (uma mistura de teatro com fotografia, música e pintura, literatura e dança), foi aquela que escancaradamente se fortaleceu como produto industrial - como se Mozart nunca tivesse sentido a pressão de patrões quando compôs algumas de seus concertos.

A liturgia se faz no cinema quando um bando disposto numa sala de cinema comunga com o início da projeção de imagens estáticas que se movimentam ilusoriamente em uma tela branca. Talvez o motivo das pessoas tratarem o cinema com impessoalidade seja o fato do “ritual” cinematográfico ser tão característico do universo industrial: a magia nasce de uma máquina (a câmera) que transforma uma ação em película (manipulada quimicamente) e que é vista pelo público por outra máquina, o projetor.

Se um livro tem duzentos ou trezentos anos, esse detalhe não afeta tanto o leitor. Se for de algum autor considerado importante, o sujeito simplesmente diria para quem o perguntasse sobre a leitura: “É de Shakespeare”. Resumindo: o que importa numa obra de arte não é simplesmente se ela é “da moda” ou não, mas sim o que um artista tem a dizer e a forma como ele diz certas coisas sobre a vida.

O leitor de um livro consegue sentir nas linhas escritas o labor do escritor, se não aprecia os esforços ao menos pondera sobre o que leu. Já no cinema, se a pessoa saí com a cuca fundida, não há méritos para o realizador, não se vê intencionalidade em nada, ao contrário, pensa que se trata de uma obra “mal-feita” - adjetivo que reforça a idéia de que quando se fala em cinema, as pessoas tendem a pensar em algo mecânico que deu errado.

Assistindo “Os Aventureiros do Bairro Proibido” na TV - talvez o maior inventário do que foi os anos loucos da década de oitenta -, alguém me pergunta: “O que é isso?”. “É de John Carpenter”, respondo. O curioso vê na tela Kurt Russell dando pontapés em chineses voadores e logo sentencia, sem o mesmo entusiasmo inicial: “Ah, é aquele filme antigo que vivia passando na Globo, né?”.


John Carpenter não é Shakespeare, mas William Shakespeare também não foi Carpenter. Se o bardo criou Hamlet, Carpenter não ficou atrás, nos deu Snake Plissken. Se no primeiro há monólogos belíssimos, no segundo há os gestos do ator Kurt Russell, os movimentos de câmera, o trabalho climático da iluminação. Se William Shakespeare deixou uma das mais belas história de amor com “Romeu e Julieta”, Carpenter não teria feito o equivalente cinematográfico com o filme “Starman - O Homem das Estrelas”?

Os puristas podem pensar que estou eu aqui a cometer blasfêmias, mas o que está em jogo é menos a canonização de uma figura em detrimento à outra do que tentar mostrar que por trás da superfície da imagem cinematográfica, especificamente por trás da câmera, há sempre um artista dizendo alguma coisa. Pode estar dizendo asneiras, mas algo está a dizer.

Assim como na literatura, na música, no teatro, há os bons e os maus artistas. Quando era pequeno, meu pai vivia a me cobrando para que eu adquirisse boa cultura, ascendesse intelectualmente. “Vai ler um livro, moleque!”, ele dizia, como se eu fosse me tornar um gênio se lesse qualquer coisa que esforçasse minhas vistas.

Lembro de ter, por várias vezes, desobedecido suas ordens. O tempo livre eu matava vendo fitas emprestadas por amigos, faroestes de John Ford e os suspenses de Hitchcock.

Deixei de ler livros para ver filmes. Por outro lado, deixei de ler muitos livros ruins para ver bons filmes, filmes que me abriram horizontes.

Aprendi mais sobre civilização vendo os filmes sobre índio e cavalarias de John Ford do que com os livros escolares. Conceitos marxistas assistindo aos filmes Joseph Losey ou espiando a nudez de mulheres sedentas por poder no filme “Coisas Secretas”, do francês Jean-Claude Brisseau. Aprendi até alguns princípios da psicanálise, vendo os filmes de Hitchcock sobre sexo, culpa, crime e castigo.


Se eu seguisse os conselhos do meu pai ao pé da letra (“Vai ler um livro, moleque!”), talvez hoje eu estaria lendo livros de auto-ajuda ou os best-sellers de Sidney Sheldon. Talvez esnobemente acompanhasse-os com um cinema artístico de “bom gosto”, que no senso comum se refere àquele filme de temática importantíssima e repleto de boas intenções - se for francês, provavelmente virá todo perfumado com alguma música romântica de Charles Aznavour na trilha sonora.

Já vendo filmes eu entrei em contato com outras artes que talvez eu não conheceria sem o auxílio do cinema. Através dos filmes baratos de terror dirigidos por Roger Corman eu travei contato com a literatura de Edgar Allan Poe, pela atuação de Mickey Rourke como Henri Chinaski eu procurei conhecer os contos e poemas de Charles Bukowski.

Talvez o cinema seja uma coisa inútil, ou uma “invenção sem futuro”, como entendiam os criadores do cinematógrafo, os irmãos Lumière. Mas existem tantas outras coisas inúteis e sem sentido, como a vida às vezes nos parece.

Nenhum grande propósito. Se a vida está aí pra ser vivida, o cinematógrafo serve para refleti-la, a 24 quadros por segundo.

sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

UM FILME É UM FILME

PUBLICADO NA FOLHA DA REGIÃO NO DIA 17 DE FEVEREIRO DE 2008


A afirmativa do título é mais ou menos como aquela máxima futebolística "clássico é clássico" ou a outra "jogo é jogo e treino é treino" (e vice-versa?). Todas elas são frases que, por trás de uma aparente banalidade, escondem um sentido muito mais rico, ou seja, essencial à arte nas quais estão inseridas.

O que poderia ser um filme além de um filme? Ora, uma obra cinematográfica pode ser catalogada de acordo com seu gênero - comédia ou faroeste, drama ou aventura - pelo período em que se inscreve - clássico ou moderno -, por escolas e movimentos da história do cinema - expressionismo alemão ou realismo italiano - e até mesmo taxada de acordo com qualificações mais esnobes - entretenimento ou arte.

Um filme pode ser muitas coisas, não? Ele pode ser um filme de gênero, pode ter determinada importância no decurso da história da arte e pode, inclusive, direcionar-se a um público que deseja um prazer imediato ou uma fruição duradoura.

Porém, tais taxações podem fazer que um determinado filme seja ignorado injustamente por suas qualidades intrínsecas (a qualidade de "um filme ser um filme") em detrimento aos seus valores gerais (de "um filme que faz parte de...").

É aí que a sabedoria de uma frase tão óbvia quando “um filme é um filme” se mostra, pois ela é capaz de valorizar a singularidade de uma obra, de preservar o seu mistério.

"Um filme é um filme", uma sentença tão vaga quanto possível pode ser também bem justa. Afinal, não poderia ser um faroeste também um épico? Pois não foi exatamente isso que o diretor John Ford fez com o filme "Rastros de Ódio", um homérico faroeste?

Não poderia ser um filme expressionista também um filme realista? Friedrich Murnau provou que nada disso era impossível com os seus filmes. “Aurora” e “Tabu” estão muito mais próximos dos filmes de Jean Renoir e de Rossellini do que parecidos com os gabinetes de Caligari.


Um filme carimbado com o selo "artístico" pode ser simplesmente uma merda pretensiosa ou um entretenimento vulgar, como os são muitos filmes emperiquitados importados da França e tantos outros filmes de indivíduos que pensam ser os novos Antonionis - o fabuloso, ou odioso, destino de Amélie Poulain, é um bom exemplo.

Por sua vez, um subestimado filme de entretenimento ou de gênero, vulgarmente tratado por "filme comercial", pode muito bem ser uma grande obra de arte.

O crítico Luc Moullet, por exemplo, adorava reforçar seu amor pelos filmes de encomenda do italiano Vittorio Cottafavi (que fazia filmes do Hércules e tudo mais) colocando-os em briga exatamente com os filmes artísticos de cineastas como Michelangelo Antonioni ou Luchino Visconti.

Luc Moullet, que também é diretor de cinema, disse certa vez, por meio da narração de um dos personagens do filme "Les Sièges de l'Alcazar": "Antonioni esconde sua mediocridade sob um véu de pretensão, enquanto o senso de existencialismo de Cottafavi é discreto, transparente, invisível, pois sua magia é filtrada por meio do tradicionalismo de filmes técnicos e seu lirismo exacerba formas convencionais".


Não há coisas como filmes de arte ou comercial, vegetal ou mineral, nada disso. "Um filme é um filme" ainda é a melhor definição. É claro que um filme pode ser bom ou ruim, mas nunca ele será ruim por ser menos artístico ou mais comercial, por ser faroeste ou de terror.

Assim como não podemos julgar um livro pela capa ou uma pessoa por sua etnia, com o cinema as coisas funcionam da mesma maneira: um filme não é ruim porque é em preto e branco ou porque é novo ou velho, ele o é porque alguma coisa deu errado. Geralmente por causa das escolhas feitas pelo diretor e sua equipe.