domingo, 8 de fevereiro de 2009

JOHN RAMBO - O LEOPARDO

PUBLICADO NA FOLHA DA REGIÃO NO DIA 16 DE MARÇO DE 2008


“Rambo IV” é um desses filmes que nos pegamos imaginando como seria a reação das pessoas presentes na sessão após a exibição. Cada indivíduo vê um filme de determinada maneira, de acordo com sua própria visão de mundo. Assim sendo, como é possível ver o último filme dirigido por Sylvester Stallone?

Certamente um estudante de sociologia diria ser o filme nada além de uma porcaria imperialista advinda da indústria cultural hollywoodiana, enquanto para o entusiasta de filosofia as frases proferidas pelo veterano do Vietnã encontrariam parentesco no existencialismo sartriano ("viver de nada ou morrer por algo", diz Rambo, numa expressão que poderia estar inserida no livro "A Náusea").

Para um esquerdista, deve ser o filme nada além de reacionário. Para um direitista, restaria declarar sua própria inocência perante as acusações.

Eu, que sou apenas um cara que gosta de filmes, posso expor algumas coisas. A primeira é que não existe nada melhor do que ir num cinema com uma decoração evocativa de outros tempos, como é o caso do cine 3 do Araçatuba Shopping com suas paredes vermelhas que remetem às cortinas que cobriam as telas de velhos cinemas, e ver um filme tão fora de moda quanto "Rambo IV".


Outro aspecto a se pensar é que, na verdade, há dois filmes neste exemplar: tem o belo e decadentista canto de cisne de um herói de guerra e o outro é o menos interessante, e também o filme que menos se nota na tela, que é uma obra esquemática apoiada na estrutura iniciada no filme-retorno “Rocky Balboa”.

No filme esquema, tem-se um famoso herói que decide viver no anonimato para só retornar ao seu trabalho para salvar uma garota idealista após, é claro, exorcizar suas memórias em uma seqüência de flash-backs - como em “Rocky Balboa”, no qual o personagem relembrava cenas de seus outros filmes no meio de uma luta.

O outro “Rambo IV” é bem melhor, uma verdadeira experiência de regresso a um estágio primitivo de apreensão cinematográfica. Este é o filme de um autor, mas não de um autor-diretor tradicional, nada disso. Stallone é o diretor, mas o que o trabalho de direção parece respeitar mesmo é a presença do autor-ator Stallone.

A história de John Rambo é a de um boina-verde que foi treinado para matar. A história de Stallone é de um brutamonte que foi treinado para bater, matar, enfim, atuar nos filmes de ação de baixa categoria.


Rambo é possivelmente o último herói politicamente incorreto da história do cinema. É daqueles que matam não por uma ideologia ou por qualquer outra desculpa esfarrapada, pois Rambo não mata para defender uma idéia, pois acredita na frase: “matar um homem para defender uma idéia não significa defender uma idéia, mas simplesmente matar um homem”.

Stallone, por sua vez, é provavelmente o último herói de ação movido exclusivamente por sua destreza física, por sua presença corpulenta diante às câmeras. Nada de utilizar métodos de atuação seguindo Marlon Brando, muito menos atuar como se estivesse no teatro - nem o distanciamento bretchiano nem o barroquismo shakespeariano -, Stallone é um corpo a violentar o enquadramento.

O terreno do filme "Rambo IV" é então o de regresso ao cinema em seu estágio mesozóico. Não há imagens bonitas no filme, nada de cinema de poesia, nem mesmo de prosa, Stallone parece compreender o instrumento da câmera apenas como uma metralhadora a ser girada de um lado a outro no intuito de atingir o inimigo, que no caso é o espectador. Se o ator Stallone violenta o enquadramento, o diretor Stallone violenta o cinema. E isso é bom.


O que reforça a sensação de estarmos diante de um filme do tempo do onça é a forma brutal como Stallone conduz seu filme. A guerra é encenada de uma maneira tão aparvalhada quanto qualquer esquete de uma daquelas comédias mudas nos quais os personagens tinham seus movimentos capturados pela câmera em velocidade acelerada. Há milhares de seqüências de imagens aceleradas no filme e cada uma delas reforça a impossibilidade de reter (compreender?) o horror de um campo de batalha.

“Matar um homem é um negócio infernal”, dizia o personagem de Clint Eastwood no faroeste “Os Imperdoáveis” com uma calmaria aterradora em sua voz. Essa é uma idéia seguida por Stallone. Nada de compreender a guerra, suas implicações filosóficas ou políticas, porque uma guerra, como diria o crítico Michel Mourlet, “não é inevitável, mas como é feita por homens ela é uma atividade normal, cotidiana, como beber, comer ou ter filhos”.

Eu diria, ainda, que o filme dirigido pelo brutamonte Stallone é o que mais se aproxima de ser uma releitura do suntuoso épico que o aristocrata italiano Luchino Visconti dirigiu sob o título "O Leopardo".


Enquanto no épico passado em meio ao período da unificação italiana é narrada a história da decadência da nobreza pelos olhos de um dos seus membros, o príncipe da Sicília, em "Rambo IV" há o declínio de outro tipo de aristocrata, um fidalgo da guerra chamado John Rambo, homem feito para guerrear em tempos de “um antimilitarismo tão insano quanto o militarismo” (Mourlet).

No filme, todos à sua volta passam a dizer que o mundo tem que mudar, que as coisas estão mudando, igual na música de Bob Dylan ("Times, they're a changing..."). Como para o príncipe da Sicília, Rambo, o nosso aristocrata do front, vê que nada muda no mundo, pois “as coisas têm que mudar simplesmente para continuarem as mesmas”.

O caminho de John Rambo é como o do príncipe, o de fazer do seu percurso o crepúsculo de uma era. Aqui é o fim de um herói de guerra, aquele que “se recusa a morrer, que faz de sua dor física uma dessas caminhadas épicas à simplicidade”. Em suma, a retomada da luta do homem contra o mundo.

4 comentários:

Anônimo disse...

Você tem razão, Diego. Há várias maneiras de se ver a mesma coisa. Diferentemente de você, achei Rambo IV um produto holywwodiano, feito por um ator-diretor que deveria virar governador de qualquer outro estado dos EUA pra nos poupar, por exemplo, de cenas com sangue de mais e narratividade de menos. Vou tentar suas outras indicações.

DANIELA BORALI disse...

Como professora de sociologia não tinha percebido a filosofia por trás das cenas e frases... Parabéns!!! Fiquei muito orgulhosa em poder contar com blog's assim... Como o seu!!!
Beijos,
Dani

Calula disse...

Comparar Rambo com O Leopardo exige uma coragem poucas vezes vistas por nossos melhores criticos....E coisa rarissima!
Mais dificil ainda e fundamentar com argumentos firmes sobre o que se pode chamar de 'cinema comparado",assim como ha a literatura comparada,O critico faz do seu texto uma verdadeira obra de arte da critica!
Parabens Diego!

Anônimo disse...

Diego você não conhece a guerra de perto e não sabe o que o filme pretende mostrar. Sua crítica cinematográfica está ótima, mas sua visão na ferocidade humana pelo próximo está distorcida. Vem até a fronteira do Acre e pede pra fazer um treinamento na base do exército. Vem patrulhar a fronteira brasileira e do outro lado ver e enfrentar quase diariamente os mesmos piratas e traficantes. Pessoas que não tem o menor escrupulo. Vai lá depois voc~e pode postar algo que realmente voc observou de perto não na tela. Parabéns pela sua análise outra vez.