segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

NÃO ESTOU LÁ

PUBLICADO NA FOLHA DA REGIÃO NO DIA 23 DE MARÇO DE 2008


Bob Dylan cá esteve, no Brasil, a trazer sua turnê há poucos dias. Não mais aqui está, mas está lá, na tela do cinema de meia dúzia de salas do país com o filme “Não estou lá”, de Todd Haynes, obra finalmente lançada comercialmente por aqui.

Mas será que Bob Dylan, o cantor e compositor, está realmente no filme? O artista pode não estar lá, mas por entre as cenas caminham muitas de suas músicas, sua obra, sua arte, enfim, sua alma.

A presença de Bob Dylan dá lugar para que seis outros corpos dêem vida a alguns de seus passos, materializando trechos de sua própria trajetória e também as letras de suas músicas, além de tornar reais tantos outros pares de lendas referidas à sua persona.

Entre os atores que dão corpo aos “avatares” do cantor, está o galã Richard Gere, o recém-falecido Heath Ledger, passando por uma mulher, a atriz Cate Blanchett, e um menino negro, Marcus Carl Franklin.


Em tempos de “crise da ficção”, como diz Inácio Araújo, no qual a criação é tratada como mentira e em que histórias descompromissadas com a toda e qualquer “história oficial” são substituídas por relatos solenes, nobres e graves, resultando em milhares de obras sempre “baseadas em história real”, “Não Estou Lá” deixa claro, logo de cara em seus créditos iniciais, que o filme não conta a história da vida do artista, mas sim que se inspira nas “muitas vidas e músicas de Bob Dylan”.

A obra é um desses filmes óvnis que chegam, arrebatam e escapam de toda e qualquer tola definição e o diretor Todd Haynes, antes o jovem promissor realizador de “A Salvo” e “Velvet Goldmine” - que já era um misto de documentário e ficção sobre artistas do glam-rock -, enfim se firma como um dos grandes artistas do cinematógrafo.

“Não estou lá” é obra de grande artista. Não uma biografia tradicional como as que costumam pulular por aí, nada de história ao melhor estilo Charles Dickens de “nasci, cresci, vivi e morri”. Ao contrário.


O filme pode decepcionar aqueles que esperam dele algo similar às obras sobre Johnny Cash ou sobre a banda The Doors, porque Haynes nem faz da vida de Dylan um romance açucarado e meloso como James Mangold fez no seu “Johnny e June” nem transforma o compositor em álibi para qualquer teoria da conspiração ou obra pseudo-politizada, como é o caso do “The Doors”, dirigido por Oliver Stone.

A falta de tais precariedades não significa dizer se tratar “Não estou lá” de uma obra incompreensível ou muito genérica sobre o artista inspirador. Mesmo o filme não narrando passo a passo da vida de Dylan, a obra é imbuída do espírito do compósito, vampirizando-o.

Não é um filme sobre Dylan, mas um verdadeiro manifesto do que ele representou e representa. Se o artista sempre buscou escapar de rótulos como “embaixador da música folk” ou “compositor engajado”, o filme escapa das taxações fazendo com que o personagem escape de história para história, de um corpo para outro.


“Uma música é uma coisa que anda por si só”, diz um dos seis personagens no início do filme. O que ele quer dizer é que uma música é viva, independe de rótulos que queiramos estabelecer para ela. O longa-metragem funciona sob o mesmo raciocínio porque ele não quer “explicar” o artista ou sua obra, mas sim estar com ele aonde quer que ele esteja - seja em um cenário de faroeste ou numa boate modernosa, seja em preto e branco ou colorido.

Creio que uma boa definição para o filme é que ele funciona um pouco como seria uma versão de qualquer conto de Jorge Luís Borges caso ele fosse transcrito por Marshall McLuhan.

De Borges, o filme arranca a estrutura labiríntica, dos labirintos de personagens que se multiplicam e se transmutam. Na vida real, por exemplo, Dylan interpretou quando jovem um vaqueiro no faroeste “Pat Garrett e Billy the Kid”, porém, em “Não Estou lá”, nessa passagem de sua vida, ele encarna ninguém menos que o próprio Billy the Kid, não mais um vaqueiro anônimo.


De McLuhan, o filme nutre a esperança de que a cultura de massas pode ser um veneno positivo e resultar em algo bom. É o que se expressa no início do filme, numa cena onde o corpo morto de um dos Dylan é aberto para que se faça a autopsia e a narração diz ser “necessário espalhar a doença de sua música”.

“Não estou lá” é um filme empolgante de ficção aos moldes de “Os Reis do Iê-Iê-Iê” e “Help”, ambos estrelados pelos “The Beatles” e dirigidos por Richard Lester, mas é também uma obra política, similar ao “One plus One”, filme que Godard fez com os Rolling Stones nos bastidores da gravação do álbum Beggar’s Banquet, obra que credita à arte um poder de resistência a qualquer verdade pré-estabelecida.

O filme é esse antídoto para a crise da ficção, a doença que conclama as “muitas vidas e músicas de Bob Dylan” para nos salvar. Com ele, há como única certeza de que ela, na verdade, nos falta. Em “Não Estou lá” o real é farsa, o relato é lúdico. Enfim, filme sem reles definições, ou seja, um grande filme.

3 comentários:

Juliano Jacob disse...

Gostei também... Esse estilo biográfico redondinho fica limitado... Todd Haynes realmente decifou a obra do poeta Dylan...

jack disse...

Bacana, Diego, seu texto sobre esse filme de que gostei muito. Muito pelo que você mesmo menciona, a propósito de Borges, a cerca das questões a respeito da ficção e da realidade, ou melhor, de quantos fragmentos se faz uma história real e, desse modo, uma ficção. Também escrevo sobre cinema num bog que considero uma revista própria e particular de cinema. Passe lá e faça uma visita se te interessar: www.roteiro77.blogspot.com

Anônimo disse...

O que mais me impressiona nos seus textos (além de ficar com vontade de assistir todos os filmes que você comenta) é sua capacidade de analisar, comparar, fragmentar seu objeto de estudo para depois remontá-lo sob a sua ótica (que passa a ser a nossa).