terça-feira, 22 de julho de 2008

CINEFILIA, ALGUMA ESPÉCIE DE DOENÇA?

PUBLICADO NA FOLHA DA REGIÃO NO DIA 13 DE JANEIRO DE 2008


O que é um cinéfilo? Esse nome estranho que sugere o diagnóstico de uma doença venérea (no final, sífilis e cinefilia parecem a mesma coisa) é como são conhecidos os apaixonados por cinema.

Porém, cinefilia não é uma doença em que os “contagiados” sofrem de sintomas padronizados. Assim como os aficionados por futebol, há cinéfilos de todos os tipos.

Há o cinéfilo Avallone, aquele que tem na ponta da língua todos os indicados e premiados ao Oscar e as fichas técnicas de todos os filmes que viu. Outro tipo é o cinéfilo Juca Kfouri, que possui um olhar caleidoscópico para o cinema, privilegiando a arte como manifestação estética, política e intelectual.

Tem também o Milton Neves, o cinéfilo fanfarrão que segue a moda vigente e sempre pende para o lado auto-promocional. Esse “cinéfilo-artista" é capaz, dentre outras coisas, de usar seu conhecimento do cinema francês para conquistar uma garota.


Como já escreveu Vinícius de Moraes, no texto intitulado "O Bom e o mau fã de cinema", nem toda cinefilia é boa. Há maniqueísmo nessa "doença" tanto quanto nos filmes de Charles Bronson.

Para Vinícius, o bom fã é aquele que senta nas fileiras da frente e se dedica, exclusivamente, a ver o filme. No seu texto, ele condena espectadores que comem nas salas, os que comentam as cenas ao passo que elas ocorrem na tela e os casais que usam a duração dos filmes para se fazer juras de amor.

Eu acredito ser o bom cinéfilo como o personagem do cientista no filme "O Homem dos Olhos de Raio-X", um sujeito que vê num colírio (o cinema) nada menos que uma janela privilegiada para o mundo.


Ou, como diria o crítico francês Michel Mourlet: “o cinema é o caminho do homem, de uma vida, rumo a Deus”. Idéia complementada por uma das frases proferidas por Ray Milland, o cientista do filme dirigido por Roger Corman: “Eu estou me aproximando dos deuses”.

Premissa não muito distante dessa é a do filme “Janela Indiscreta”, de Alfred Hitchcock, sobre um fotógrafo profissional que, ao ficar confinado em seu apartamento após quebrar a perna em um acidente de trabalho, se entretém espiando seus vizinhos do prédio à sua frente. Mas, como no cinema, nem toda espiada do fotógrafo é um momento de lazer e, por isso, ele acaba testemunhando um assassinato.


O que Hitchcock extrai dali, num dos seus mais célebres filmes, não é apenas o suspense que acabou caracterizando-o como mestre, mas também a problematização do papel do espectador no cinema. Problematização comprovada na inesquecível cena do encontro do fotógrafo, James Stewart, com o assassino.

O criminoso, antes de qualquer ação, se vira para o fotógrafo voyeur e diz: “O que você quer de mim?”. Stewart, que demora a reagir ao confronto, demonstra nada além de espanto com a abordagem questionadora, porque ele não estava ali para fazer justiça e testemunhar crime algum, ele só queria se divertir a olhar a rotina de seus vizinhos.


Hitchcock diz na cena que por mais que o espectador de cinema clame por sua inocência em qualquer atentado criminoso efetivado por um cineasta (Hitchcock, por exemplo, foi o maior encenador de crimes no cinema), na verdade ele exerce certa influência no “caso”, quer seja com o seu deleite, horror ou torpor.

A mesma pergunta que o assassino faz ao fotógrafo-voyeur deve ser feita aos amantes do cinema: o que um cinéfilo quer de um filme? Só não se deve perder de vista, ao emitir qualquer resposta, uma afirmação como a de Nietzsche: “quando se olha muito para um abismo, o abismo olha para você”.

A frase de Nietzsche, a cena do confronto no filme de Hitchcock, o delírio do cientista em “O Homem de Olhos de Raio-X” caminham pela velha história: as pessoas constantemente se olham e se julgam, mas se esquecem que são também constantemente julgadas pelo cinema.


Ser um bom cinéfilo definitivamente não é ver o maior número de filmes possíveis, não é ser uma espécie de maratonista ou um atleta cultural, cinéfilo é simplesmente um indivíduo capaz de ter seu olhar modificado pela influência de certas obras e reconhecer que ao se avaliar um filme ele também pode estar sendo julgado por ele. Bom cinéfilo, enfim, é aquele indivíduo que acredita ser o cinema não só outra atividade feita para entretenimento, mas sim uma arte indissociável da vida.

Talvez o cinema não seja a cura para nada, mas de certo é uma doença que deflagra sintomas e estabelece diagnósticos para as coisas da vida. E se o cinema é uma doença, então o cinéfilo talvez possa ser mesmo chamado de doente.

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