sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

UMA RISADA POR MINUTO

PUBLICADO NA FOLHA DA REGIÃO NO DIA 02 DE MARÇO DE 2008


Quando perguntado sobre o motivo de colocar o personagem do ator Tony Randall para tocar todos os instrumentos da famosa fanfarra da 24th Century Fox na abertura do filme “Em Busca de um Homem”, Frank Tashlin respondeu que queria fazer um filme que provocasse o riso mais depressa do que qualquer outro.

A cena do filme e a resposta de seu diretor são lembradas aqui porque algo muito parecido com isso acontece no início de “Os Simpsons - O Filme”, quando um dos personagens cantarola a fanfarra do estúdio estando no meio da logomarca. Será que os produtores queriam provocar o riso mais rápido possível?

Após a espera de quase duas décadas pelo primeiro filme da série de animação mais famosa da televisão norte-americana, os criadores de “Os Simpsons” procuraram não decepcionar os fãs e fizeram do primeiro longa-metragem uma obra que fosse um pouco além da idéia de um bom episódio alongado.

Diferente de outros filmes baseados em seriados animados, o filme dos Simpsons não foge dos padrões estabelecidos nas dezenove temporadas, mas também não é construído com uma história de estrutura mais “cinematográfica” que faz o desenho perder sua qualidade original.


Se no “Beavis e Butt-Head detonam a América”, Mike Judge, o criador da série que foi ao ar na MTV nos anos 90, precisou fazer a televisão dos irmãos adolescentes ser roubada para que eles desgrudassem dela e não passassem o filme inteiro a ver e comentar clipes, em “O Simpsons” nenhum pretexto a mais existe para que o filme funcione.

Na verdade, o longa-metragem parece funcionar seguindo a lógica: “oh, vamos fazer do filme nada muito diferente do que se faz na televisão, mas se um filme é para ser tratado como um grande espetáculo, vamos engrandecer o que já fizemos nos episódios, dar às piadas uma nova dimensão”.

“Uma risada por minuto”, é o que parece ser o objetivo do filme. Meta atingida quando na abertura se vê um dos personagens cantarolando a fanfarra do estúdio seguido pelas piadas metalingüísticas com toda a família Simpsons vendo no cinema um longa-metragem da série Comichão e Coçadinha (“Que bobagem gastar dinheiro no cinema com um negócio que se pode ver de graça na TV”, diz Homer), passando aos créditos do filme que reprisam os da própria série - com Bart escrevendo na lousa que não irá ver o filme em cópia pirata -, etc.

Como já conhecido na série, a trama aqui é nada além de um pretexto. Semelhante a um filme de Hitchcock, que fazia da história um pretexto para o suspense, a história em “Os Simpsons” é uma desculpa para o humor.


A desculpa do filme são os problemas ambientais enfrentados na cidade de Springfield. Desta questão atual, como usual na série, milhares de outras peripécias e aloprações surgem para mostrar que a questão ambiental não era o único alvo.

Tudo é piada em “Os Simpsons - O filme”, cada cena existe menos para fazer qualquer sentido narrativo do que para fazer o espectador se mijar de rir e, talvez, chacoalhar um pouco alguns conceitos morais, pilares políticos e filosóficos estabelecidos nessa era tão politicamente correta.

Há piadas politizadas, como as sobre a incompetência do presidente norte-americano - claramente inspirado no ator/governador Arnold Schwarzenegger -, ou acerca do engajamento ambiental de Lisa e seu namoradinho irlandês (que “não é filho do Bono”, como ele mesmo diz), mas também não faltam piadas abobalhadas, como as que envolvem o porco-astro de uma campanha publicitária e a nudez de Bart.

Como nos habituamos a ver na série, o filme “Os Simpsons” faz humor de tudo para no fim não deixar nada de pé. Se uma risada por minuto era o objetivo, meta nem um pouco fácil de obter vendo a dificuldade de manter o padrão elevado dos episódios após dezenove anos de exibição semanal na TV, o filme foi bem-sucedido na empreitada.

domingo, 14 de dezembro de 2008

CINEMA, ARTE INÚTIL OU SEM FUTURO?

PUBLICADO NA FOLHA DA REGIÃO NO DIA 24 DE FEVEREIRO DE 2008


É comum quando alguém adjetiva como “velho” um filme realizado há pouco mais de uma década. Porém, essa é uma qualidade definida mais pela disposição dos filmes nas prateleiras das vídeo-locadoras do que uma sentença aplicável na avaliação da obra enquanto expressão artística. Arte não tem prazo de validade determinado em rótulos, tampouco segue o esquema das estações do ano - como disse Peter Bogdanovich, “existem apenas os filmes vistos e os não-vistos”.

Um filme é considerado velho quando está pra venda na gôndola de “semi-novos” porque as pessoas tendem a enxergar o cinema como mero passatempo. Não é tido como uma arte nobre como a literatura, por mais que os ingressos já não sejam tão populares quanto nos primórdios.

O que vale para o público é mais a pipoca, os amassos na poltrona, o passatempo de final de semana do que outra coisa. Cinema é um evento, antes de qualquer coisa, e isso que o torna uma arte “impura”. Impura porque além de ser uma arte que se apóia em todas as anteriores (uma mistura de teatro com fotografia, música e pintura, literatura e dança), foi aquela que escancaradamente se fortaleceu como produto industrial - como se Mozart nunca tivesse sentido a pressão de patrões quando compôs algumas de seus concertos.

A liturgia se faz no cinema quando um bando disposto numa sala de cinema comunga com o início da projeção de imagens estáticas que se movimentam ilusoriamente em uma tela branca. Talvez o motivo das pessoas tratarem o cinema com impessoalidade seja o fato do “ritual” cinematográfico ser tão característico do universo industrial: a magia nasce de uma máquina (a câmera) que transforma uma ação em película (manipulada quimicamente) e que é vista pelo público por outra máquina, o projetor.

Se um livro tem duzentos ou trezentos anos, esse detalhe não afeta tanto o leitor. Se for de algum autor considerado importante, o sujeito simplesmente diria para quem o perguntasse sobre a leitura: “É de Shakespeare”. Resumindo: o que importa numa obra de arte não é simplesmente se ela é “da moda” ou não, mas sim o que um artista tem a dizer e a forma como ele diz certas coisas sobre a vida.

O leitor de um livro consegue sentir nas linhas escritas o labor do escritor, se não aprecia os esforços ao menos pondera sobre o que leu. Já no cinema, se a pessoa saí com a cuca fundida, não há méritos para o realizador, não se vê intencionalidade em nada, ao contrário, pensa que se trata de uma obra “mal-feita” - adjetivo que reforça a idéia de que quando se fala em cinema, as pessoas tendem a pensar em algo mecânico que deu errado.

Assistindo “Os Aventureiros do Bairro Proibido” na TV - talvez o maior inventário do que foi os anos loucos da década de oitenta -, alguém me pergunta: “O que é isso?”. “É de John Carpenter”, respondo. O curioso vê na tela Kurt Russell dando pontapés em chineses voadores e logo sentencia, sem o mesmo entusiasmo inicial: “Ah, é aquele filme antigo que vivia passando na Globo, né?”.


John Carpenter não é Shakespeare, mas William Shakespeare também não foi Carpenter. Se o bardo criou Hamlet, Carpenter não ficou atrás, nos deu Snake Plissken. Se no primeiro há monólogos belíssimos, no segundo há os gestos do ator Kurt Russell, os movimentos de câmera, o trabalho climático da iluminação. Se William Shakespeare deixou uma das mais belas história de amor com “Romeu e Julieta”, Carpenter não teria feito o equivalente cinematográfico com o filme “Starman - O Homem das Estrelas”?

Os puristas podem pensar que estou eu aqui a cometer blasfêmias, mas o que está em jogo é menos a canonização de uma figura em detrimento à outra do que tentar mostrar que por trás da superfície da imagem cinematográfica, especificamente por trás da câmera, há sempre um artista dizendo alguma coisa. Pode estar dizendo asneiras, mas algo está a dizer.

Assim como na literatura, na música, no teatro, há os bons e os maus artistas. Quando era pequeno, meu pai vivia a me cobrando para que eu adquirisse boa cultura, ascendesse intelectualmente. “Vai ler um livro, moleque!”, ele dizia, como se eu fosse me tornar um gênio se lesse qualquer coisa que esforçasse minhas vistas.

Lembro de ter, por várias vezes, desobedecido suas ordens. O tempo livre eu matava vendo fitas emprestadas por amigos, faroestes de John Ford e os suspenses de Hitchcock.

Deixei de ler livros para ver filmes. Por outro lado, deixei de ler muitos livros ruins para ver bons filmes, filmes que me abriram horizontes.

Aprendi mais sobre civilização vendo os filmes sobre índio e cavalarias de John Ford do que com os livros escolares. Conceitos marxistas assistindo aos filmes Joseph Losey ou espiando a nudez de mulheres sedentas por poder no filme “Coisas Secretas”, do francês Jean-Claude Brisseau. Aprendi até alguns princípios da psicanálise, vendo os filmes de Hitchcock sobre sexo, culpa, crime e castigo.


Se eu seguisse os conselhos do meu pai ao pé da letra (“Vai ler um livro, moleque!”), talvez hoje eu estaria lendo livros de auto-ajuda ou os best-sellers de Sidney Sheldon. Talvez esnobemente acompanhasse-os com um cinema artístico de “bom gosto”, que no senso comum se refere àquele filme de temática importantíssima e repleto de boas intenções - se for francês, provavelmente virá todo perfumado com alguma música romântica de Charles Aznavour na trilha sonora.

Já vendo filmes eu entrei em contato com outras artes que talvez eu não conheceria sem o auxílio do cinema. Através dos filmes baratos de terror dirigidos por Roger Corman eu travei contato com a literatura de Edgar Allan Poe, pela atuação de Mickey Rourke como Henri Chinaski eu procurei conhecer os contos e poemas de Charles Bukowski.

Talvez o cinema seja uma coisa inútil, ou uma “invenção sem futuro”, como entendiam os criadores do cinematógrafo, os irmãos Lumière. Mas existem tantas outras coisas inúteis e sem sentido, como a vida às vezes nos parece.

Nenhum grande propósito. Se a vida está aí pra ser vivida, o cinematógrafo serve para refleti-la, a 24 quadros por segundo.

sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

UM FILME É UM FILME

PUBLICADO NA FOLHA DA REGIÃO NO DIA 17 DE FEVEREIRO DE 2008


A afirmativa do título é mais ou menos como aquela máxima futebolística "clássico é clássico" ou a outra "jogo é jogo e treino é treino" (e vice-versa?). Todas elas são frases que, por trás de uma aparente banalidade, escondem um sentido muito mais rico, ou seja, essencial à arte nas quais estão inseridas.

O que poderia ser um filme além de um filme? Ora, uma obra cinematográfica pode ser catalogada de acordo com seu gênero - comédia ou faroeste, drama ou aventura - pelo período em que se inscreve - clássico ou moderno -, por escolas e movimentos da história do cinema - expressionismo alemão ou realismo italiano - e até mesmo taxada de acordo com qualificações mais esnobes - entretenimento ou arte.

Um filme pode ser muitas coisas, não? Ele pode ser um filme de gênero, pode ter determinada importância no decurso da história da arte e pode, inclusive, direcionar-se a um público que deseja um prazer imediato ou uma fruição duradoura.

Porém, tais taxações podem fazer que um determinado filme seja ignorado injustamente por suas qualidades intrínsecas (a qualidade de "um filme ser um filme") em detrimento aos seus valores gerais (de "um filme que faz parte de...").

É aí que a sabedoria de uma frase tão óbvia quando “um filme é um filme” se mostra, pois ela é capaz de valorizar a singularidade de uma obra, de preservar o seu mistério.

"Um filme é um filme", uma sentença tão vaga quanto possível pode ser também bem justa. Afinal, não poderia ser um faroeste também um épico? Pois não foi exatamente isso que o diretor John Ford fez com o filme "Rastros de Ódio", um homérico faroeste?

Não poderia ser um filme expressionista também um filme realista? Friedrich Murnau provou que nada disso era impossível com os seus filmes. “Aurora” e “Tabu” estão muito mais próximos dos filmes de Jean Renoir e de Rossellini do que parecidos com os gabinetes de Caligari.


Um filme carimbado com o selo "artístico" pode ser simplesmente uma merda pretensiosa ou um entretenimento vulgar, como os são muitos filmes emperiquitados importados da França e tantos outros filmes de indivíduos que pensam ser os novos Antonionis - o fabuloso, ou odioso, destino de Amélie Poulain, é um bom exemplo.

Por sua vez, um subestimado filme de entretenimento ou de gênero, vulgarmente tratado por "filme comercial", pode muito bem ser uma grande obra de arte.

O crítico Luc Moullet, por exemplo, adorava reforçar seu amor pelos filmes de encomenda do italiano Vittorio Cottafavi (que fazia filmes do Hércules e tudo mais) colocando-os em briga exatamente com os filmes artísticos de cineastas como Michelangelo Antonioni ou Luchino Visconti.

Luc Moullet, que também é diretor de cinema, disse certa vez, por meio da narração de um dos personagens do filme "Les Sièges de l'Alcazar": "Antonioni esconde sua mediocridade sob um véu de pretensão, enquanto o senso de existencialismo de Cottafavi é discreto, transparente, invisível, pois sua magia é filtrada por meio do tradicionalismo de filmes técnicos e seu lirismo exacerba formas convencionais".


Não há coisas como filmes de arte ou comercial, vegetal ou mineral, nada disso. "Um filme é um filme" ainda é a melhor definição. É claro que um filme pode ser bom ou ruim, mas nunca ele será ruim por ser menos artístico ou mais comercial, por ser faroeste ou de terror.

Assim como não podemos julgar um livro pela capa ou uma pessoa por sua etnia, com o cinema as coisas funcionam da mesma maneira: um filme não é ruim porque é em preto e branco ou porque é novo ou velho, ele o é porque alguma coisa deu errado. Geralmente por causa das escolhas feitas pelo diretor e sua equipe.

segunda-feira, 25 de agosto de 2008

QUE HORAS SÃO?

PUBLICADO NA FOLHA DA REGIÃO NO DIA 10 DE FEVEREIRO DE 2008


Afinal, quando se vê um filme, o que se espera dele? Certas pessoas assistem a filmes contando com um bom entretenimento para o final de semana. Outras, para adquirir alguma bagagem para alguma questão.

Muitos buscam encontrar receitas para se viver ou respostas que não são encontradas no dia a dia, enquanto poucos não se satisfazem quando os filmes não vão ao encontro com suas concepções de inovações (estética, temática, conceitual).

O que é possível se achar quando se olha para certos filmes com uma bagagem cultural e intelectual imutável? O que se encontra ao se deparar com o cinema de um Otto Preminger? Don Weis? Michael Cimino?

Às vezes, para se justificar uma paixão por certos filmes não é suficiente a minúcia com que o cineasta executa uma cena ou a forma como ele faz a junção de dois planos, é preciso recorrer à “bodes expiatórios”, ou seja, aos famosos chavões.

É preciso falar da complexidade de personagem X, do conteúdo político subliminar ou do cunho filosófico implícito na narrativa, etc. Coisas que existem mais na mente de quem assiste do que nas imagens dos filmes.

Do outro lado, para justificar o desprezo por certos filmes, se julga obras simplesmente por não trazerem nada de novo sobre determinado tema, ou pior, menospreza-se filmes quando não se consegue enxergar a beleza das composições. Como se beleza significa-se apenas filmar cada paisagem como se fosse um cartão-postal.

Muitas vezes um filme funciona como um relógio no que concerne sua fruição. Por vezes, com um relógio, as pessoas se preocupam demais com seu ornamento, cores e dimensões dos ponteiros e se esquecem de olhar as horas.

Há cineastas que dão ao espectador apenas as horas, ou seja, o cinema em sua essência e classe. Um cinema que não há palavras pra se definir, há apenas o que se ver e sentir.

Cinema em que se nota certas coisas no andar do ator, no gesto. Cinema em que há coisas à vista e tantas outras escondidas, no qual essas coisas escondidas (sentimentos) são iluminadas exatamente quando aquelas que estão visíveis (os gestos) trabalham.

Basta uma lente absorvendo o ambiente de uma igreja seguida por um close-up de Clint Eastwood vestido de padre, com uma estranheza em sua voz ao dar o sermão, para que o espectador desconfie de que seu personagem não faz parte daquele ambiente, no filme “O Último Golpe”, dirigido por Michael Cimino em 1974.


Basta a câmera avançar em direção ao James Stewart, assobiando enquanto dirige o carro, vestindo chapéu de pesca e carregando uma vara, para sermos arremessados no mundo do advogado decadente em “Anatomia de um Crime”.

Cimino no primeiro caso e Preminger no segundo. Nenhum dos dois nos dá nada além de uma competente aula de execução. Não estão ali inventando a roda, mas ambos a utilizam de um modo como poucos a utilizaram.

Existe algo nesses filmes que o cineasta Nicholas Ray chamaria de “revelar algumas almas em pleno trabalho”, ou seja, uma impressão de frescor, uma impressão de tudo aquilo que foi encenado, filmado e editado sem nenhuma imposição, como se estivesse acontecendo à frente do espectador, num passe de mágica.

É a impressão que fica na cena de “Anatomia de um Crime” em que James Stewart toca piano enquanto espera o resultado do julgamento que pode lhe dar a redenção profissional que tanto lutou no decorrer do filme para conquistar.

É a impressão que se tem quando Donald O’Connor dança e troca de figurino, entra e sai por várias portas de um cenário no musical “É Deste que eu Gosto”, de Don Weis.


Àqueles que procuram filosofias, receitas de bolos ou qualquer outro tipo de satisfação sórdida, a dica para quando se deparar com filmes que dão apenas o “básico”, ou seja, o cinema, o melhor a fazer é cair fora, porque a paixão de certos cineastas é simplesmente a paixão pelo ofício, o cinema.

É uma paixão e uma arte em franca extinção, é verdade. Não há muitos cinéfilos que apreciam isso no cinema, nem cineastas que priorizam tal qualidade, denominada pelos franceses por “mise en scène”, ou seja, “a arte do que se coloca em cena”.

Não é um cinema que busca documentar alguma coisa, comunicar ou entreter, é um cinema que se preza em revelar a verdade inequívoca do cinema, essa arte de desnudar e modular sentimentos.

quinta-feira, 14 de agosto de 2008

POR UM CINEMA AUTORISTA

PUBLICADO NA FOLHA DA REGIÃO NO DIA 03 DE FEVEREIRO DE 2008


A “política de autores” foi criada por redatores da revista francesa Cahiers du Cinema no final dos anos 50 no intuito de valorizar a arte cinematográfica de cineastas que não eram considerados verdadeiros artistas em ambientes intelectuais.

Entre os defensores do manifesto, estavam figuras que depois se tornariam conhecidas exatamente por seus papéis de diretores de cinema, como François Truffaut e Jean-Luc Godard.

Mais de meio século após o início das discussões sobre autorismo no cinema, a “política de autores” fez tanto barulho que causou muitas imprecisões interpretativas a cerca de suas reais intenções.

Muitos contestaram a “política de autores” sob o pretexto de que o manifesto diminuía a importância da colaboração de outros profissionais na feitura de um filme - como o papel do roteirista, do diretor de fotografia ou do montador -, ou até mesmo que essa “política de autores” era uma bobagem incompatível com a linha de produção industrial que movia as engrenagens do cinema.

O problema desses argumentos dissonantes era que eles pareciam servir apenas para macular uma possível individualidade dos diretores inseridos no sistema hollywoodiano e, assim, escancarar o culto aos artistas tidos como “verdadeiros autores”, aqueles inseridos em escolas classificatórias do cinema ou os que desenvolveram suas próprias teorias para o ofício.


No primeiro caso, o alemão Friedrich Murnau tinha sua obra classificada dentro do “expressionismo alemão”, enquanto o soviético Serguei Eisenstein escreveu algumas antologias sobre a montagem no cinema.

Assim, a “política de autores” insurgiu contra uma idéia preconceituosa que colocava o cinema em dois pólos distintos e irreconciliáveis: de que o cinema ou aspirava à arte e as inovações (o surrealismo de um cinema como o praticado por Luis Buñuel entre a virada da década de 20 para a de 30) ou era apenas uma atividade lucrativa, um divertimento (simbolizado principalmente pela indústria norte-americana).

A “política de autores” não surgiu para ditar modas, mas como uma ferramenta útil na avaliação e na individualização do trabalho dos cineastas, que seria reconhecido não por seus valores temáticos, não pelas mensagens que poderiam ser pregadas, mas pela maneira como o realizador articula as idéias, conduz uma narrativa.

A maneira como os diretores de cinema conduziam seu trabalho recebeu dos franceses um termo próprio e apropriado: “mise-en-scène” (o pôr-se em cena). Pela mise en scène o autorismo no cinema não surgia como uma forma de depreciar o trabalho dos outros colaboradores de uma obra, mas de ressaltar a importância do diretor na administração dos valores de tais colaboradores na produção de um sentido, de uma unidade.

Jean-Luc Godard disse sobre o manifesto que a palavra importante não era “autores”, mas “política”. O que ele afirmava com isso era que, nos anos 50, não interessavam aos redatores da Cahiers du Cinema transformar o culto às estrelas de cinema no culto aos cineastas. Não interessavam os nomes, mas o método de trabalho de cada cineasta e a identidade que eles imprimiam em cada trabalho. Interessava mais a política porque a teoria servia na defesa de um ponto de vista, da afirmação de uma visão de cinema.

Se Alfred Hitchcock era considerado um mero confeiteiro nas rodinhas intelectuais, a “política de autores” era a ferramenta a mostrar que os “bolos” feitos por Hitchcock tinham uma marca indefectível.


Se um cineasta como Howard Hawks, pouco afeito aos grilhões dos gêneros de cinema, era recebido com a indiferença de que seu trabalho nada tinha de pessoal, a “política de autores” era o instrumento a revelar que cada comédia, faroeste, drama ou aventura dirigida pelo realizador se enchia de traços que demonstrava a visão do homem, do profissional.

No cinema contemporâneo, é comum encontrar o nome de qualquer diretor estreante surgido dos videoclipes, ou da televisão, junto ao vaidoso crédito “Um filme de...”, mesmo que esse trabalho seja dotado de uma falta de talento ou personalidade.

A “política de autores” não existe para contemplar tais distorções, mas exatamente por desfazê-las, pois o conceito sempre servirá de arma na defesa de cineastas talentosos e desprestigiados, na defesa dos gênios que são tratados por bestas.

No fundo, não interessa o nome do cineasta em destaque nos créditos de um filme, mas tentar responder à básica pergunta: “afinal, quem faz os filmes?”. Como dizia Howard Hawks: “é o diretor que narra uma história e, se for bom, deve ter seu próprio método para contá-la”. Enfim, o método é tudo no cinema.

segunda-feira, 4 de agosto de 2008

CINE-FILHO DA AMÉRICA

PUBLICADO NA FOLHA DA REGIÃO NO DIA 27 DE JANEIRO DE 2008


Se o neologismo cine-filho criado pelo crítico Serge Daney servia-lhe para destacar a importância do cinema na sua formação e de mostrar de que maneira o percurso do cinema moderno fora também o seu, eu diria ser essa expressão aplicável também a muitos cinéfilos, ou cine-filhos, criados em empoeiradas locadoras pós-80.

A principal diferença da geração que se criou em vídeos-locadoras das anteriores, formadas em Cinematecas ou cineclubes, é a incomparável superioridade na formação intelectual adquirida pela geração de Daney.

É uma superioridade evidente pelo modo como o crítico se formou, pois quando teve a chance de mergulhar nas obras de certos cineastas, certamente ele não fez a imersão pelas metades ou com lacunas, pois as programações oferecidas nos cinemas parisienses deram a ele uma visão concreta, menos enevoada.

Aos cine-filhos da era do VHS, “precariedade” é a palavra-chave para a compreensão desse nebuloso período. A precariedade do VHS é também minha precariedade, minha defasagem em relação a obras de certos realizadores, de compreensão de certos filmes.

Precariedade imposta pela própria maneira como as fitas de VHS eram concebidas - as janelas de exibição das fitas privilegiavam o formato espremido da TV e não as proporções do cinema - e do modo como a história do cinema foi contada por intermédio das distribuidoras de vídeo.

As histórias do cinema nos foram dadas aos pedaços. Para um cine-filho da era do VHS, o cinema não começava com Lumière e sim com as fitas de Chuck Norris ou da série América Ninja. Para um cine-filho da era do VHS, o grande cinema não era Godard e sim Highlander.


A verdade é que os sobreviventes da geração do vídeo, os que restaram, construíram as histórias do cinema na raça, na vontade, no amor pela arte vencendo pelo cansaço. E grande parte do conhecido, o grande responsável por nossa formação, o nosso "cine-pai" certamente foi uma distribuidora como a América Vídeo. Aquela das capinhas em cor azul.

Como um filho, ou cine-filho, da América Vídeo, eu diria que todo meu aprendizado e amadurecimento passam pelas fitas emboloradas distribuídas pela empresa. Descobri o cinema pelos filmes de luta estrelados por Jean-Claude Van Damme. "Garantia de Morte", "Cyborg" ou "O Grande Dragão Branco" eram algumas das obras.

Da paixão pelos filmes de Van Damme, que nutria na infância, descobri no final da adolescência que amava "O Ano do Dragão", obra de Michael Cimino.

Com este filme, dei conta também que toda a obsessão do personagem central do filme, um policial disposto a consertar toda a história dos EUA, era também minha obsessão de querer ver todos os filmes do mundo, de refazer o percurso histórico do cinema a qualquer custo.

De "O Ano do Dragão", encontrei o filme "Os Amantes", obra essencial e dos raros feitos por John Cassavetes que foi lançado em vídeo.

A loucura da personagem de Gena Rowlands nesse filme, que levava sempre mais um animal de estimação para dentro da casa de seu irmão solitário, fazendo do lugar uma arca de Noé, não era muito diferente do ritual cinéfilo de sempre trazer mais uma fita de vídeo para dentro de casa, mesmo não tendo mais nenhum espaço sobrando na estante.

O que os filmes de Van Damme, os dirigidos por Cimino e Cassavetes tinham em comum era o fato de terem sido lançados pelo marginal selo.


O que se concluí dessas memórias um tanto desmemoriadas da era do VHS é que cada passo dado na afirmação de valores, de uma idéia de cinema em evolução, todo o caminhar se fez pelo auxílio das fitas da América Vídeo.

A precariedade do vídeo, as raras descobertas, a decadência do selo, o crepúsculo desses tempos... Toda essa história é também a minha.

quarta-feira, 30 de julho de 2008

CINEFILIA EM TEMPO DE EMULE

PUBLICADO NA FOLHA DA REGIÃO NO DIA 20 DE JANEIRO DE 2008


Costuma-se atribuir culpa à pirataria e internet pela decadência de videolocadoras ou do mercado de distribuição de filmes. Estão entre as figuras “demoníacas” os programas de compartilhamento de arquivo, como o Emule.

São mal-entendidos disseminados, por exemplo, através de vídeos informativos inclusos nos dvds das grandes distribuidoras. Um exemplo é aquele no qual um pai todo orgulhoso leva pra casa uma cópia pirata e acaba tomando uma lição de moral do filho.

Fato é que o Emule sinaliza muito mais uma ruptura na história da cinefilia do que a causa para qualquer sinal de decadentismo das videolocadoras.

O Emule é um personagem importante na história contemporânea da cinefilia, tão importante para toda uma geração de cinéfilos originários de “guetos” da internet quanto as salas de bate-papo, blogs, listas de discussão segmentada, etc.

Geração que pouco se lembra das empoeiradas e grandiosas vídeo locadoras, aquelas parecidas com pequenos e mal-tratados museus, e que viu esses mesmos pequenos e sujos locais serem substituídos, gradativamente, pelas videolocadoras com aparência de sexy-shop e/ou de farmácia.

Com o desaparecimento dos museus pulguentos e com a chegada das lojas que queimariam toda a filmografia do Alfred Hitchcock se necessitassem de um espaço para colocar alguma bombonière, a procura homérica por filmes se tornou uma prática inútil, quixotesca.

Se cinefilia parecia uma atividade promissora quando uma cinemateca francesa, nos anos 60, era capaz de instruir uma geração de cinéfilos-críticos/cinéfilos-cineastas, como Jean-Luc Godard ou François Truffaut, o que dizer dos nossos dias, em que não mais existem verdadeiros cinemas, mas os multiplexes, que mais se parecem com aquele bordel no qual a Nastassja Kinski trabalha no filme "Paris, Texas", de Wim Wenders?

Se cinefilia parecia uma atividade sedutora quando foram fundados centenas de cineclubes nas capitais brasileiras que formaram gênios como Glauber Rocha ou Rogério Sganzerla, o que dizer quando a mera menção de que o cinema é também passível de discussão é capaz de causar urticárias nas pessoas?


Se foi transformado numa espécie de seita "demoníaca" com o advento do vídeo-cassete, no qual cada ida a uma vídeo-locadora, cada descoberta de um selo de distribuição misterioso, cada fita rara embolorada ou edição cortada e porca de um filme de Dario Argento rendiam momentos embriagantes de fúria, terror e revelação, o que restou?

Restou a Internet, que se não veio para salvar a "cinefilia", veio para misturar um pouco de cada característica dos vários momentos da história da cinefilia.

A troca de filmes por meio de um desses programas de compartilhamento foi uma atividade que acabou adotando o papel que antes pertenciam às cinematecas e cineclubes. Programas como o Emule possibilitam a descoberta de certos filmes que por outros meios raramente seriam conhecidos.

O Emule, sendo assim, tomou o espaço que as videolocadoras não mais poderiam ocupar e se tornou o banco de dados no qual as obras contidas naqueles velhos e pulguentos museus, ao redor do mundo, poderiam se refugiar.

Como achar, vivendo no Brasil, os filmes do maldito cineasta francês Jean Eustache? Como ter acesso aos filmes de um dos mais comentados cineasta contemporâneos, como o tailandês do impronunciável nome Apichatpong Weerasethakul? Os clássicos orientais dos japoneses Kenji Mizoguchi ou Yasujiro Ozu? O Emule também possibilita o conhecimento desses cineastas e milhares de outros cinemas de outras nacionalidades.


Se o Emule de certo modo substituiu as cinematecas e cineclubes na forma de se ter acesso a certos filmes, as listas de discussão, blogs de cinema e as revistas on-line serviram de espaços para se praticar a reflexão e o diálogo sobre cinema.

Espaço atualmente tão importante que até críticos e cinéfilos de outras gerações aderiram à “causa”, no intuito de atualizar o diálogo sobre a arte. O crítico Inácio Araújo, da Folha de S. Paulo, e o cineasta Carlos Reichenbach estão entre os que mantêm blogs de cinema.

Mas não só de maravilhas vive essa geração de cinéfilos órfãos (abandonados pelos pais, os cinemas e locadoras que não mais existem) e bastardos (nascidos dessa relação incestuosa entre o cinema e o vídeo, película e fita magnética, que gerou o digital e virtual, o disco e o Emule). A facilidade do acesso, aos filmes e às informações, seduz tanto quanto aniquila.

Se antes a esperança do lançamento de certas obras malditas parecia testar a fé dos cinéfilos e fazia com que se apreciasse cada obra como se fosse a primeira, a última ou a única, com o Emule o indivíduo pode ler o nome de Howard Hawks estampado em algum Wikipédia da vida, baixar as obras e, conseqüentemente descartá-las. De forma tão impessoal quanto o modo como se adquire as obras.

Se antes as poucas informações e reflexões disponíveis sobre cinema faziam com que o cinéfilo absorvesse-as efetivamente e, conseqüentemente, formulasse pensamentos mais sólidos sobre as obras assistidas, a facilidade no “consumo” de críticas leva o cinéfilo a ruídos na recepção das idéias, a diluições ou incompreensão de conceitos.

A cinefilia de hoje certamente não é como a de ontem, mas é na internet que a prática conseguiu se manter de pé, ao menos. A impessoalidade da mídia talvez impeça uma efervescência característica de outros tempos, mas essa “emulefilia” parece ser, dos desmembramentos da cinefilia, uma prática das mais estimulantes.

terça-feira, 22 de julho de 2008

CINEFILIA, ALGUMA ESPÉCIE DE DOENÇA?

PUBLICADO NA FOLHA DA REGIÃO NO DIA 13 DE JANEIRO DE 2008


O que é um cinéfilo? Esse nome estranho que sugere o diagnóstico de uma doença venérea (no final, sífilis e cinefilia parecem a mesma coisa) é como são conhecidos os apaixonados por cinema.

Porém, cinefilia não é uma doença em que os “contagiados” sofrem de sintomas padronizados. Assim como os aficionados por futebol, há cinéfilos de todos os tipos.

Há o cinéfilo Avallone, aquele que tem na ponta da língua todos os indicados e premiados ao Oscar e as fichas técnicas de todos os filmes que viu. Outro tipo é o cinéfilo Juca Kfouri, que possui um olhar caleidoscópico para o cinema, privilegiando a arte como manifestação estética, política e intelectual.

Tem também o Milton Neves, o cinéfilo fanfarrão que segue a moda vigente e sempre pende para o lado auto-promocional. Esse “cinéfilo-artista" é capaz, dentre outras coisas, de usar seu conhecimento do cinema francês para conquistar uma garota.


Como já escreveu Vinícius de Moraes, no texto intitulado "O Bom e o mau fã de cinema", nem toda cinefilia é boa. Há maniqueísmo nessa "doença" tanto quanto nos filmes de Charles Bronson.

Para Vinícius, o bom fã é aquele que senta nas fileiras da frente e se dedica, exclusivamente, a ver o filme. No seu texto, ele condena espectadores que comem nas salas, os que comentam as cenas ao passo que elas ocorrem na tela e os casais que usam a duração dos filmes para se fazer juras de amor.

Eu acredito ser o bom cinéfilo como o personagem do cientista no filme "O Homem dos Olhos de Raio-X", um sujeito que vê num colírio (o cinema) nada menos que uma janela privilegiada para o mundo.


Ou, como diria o crítico francês Michel Mourlet: “o cinema é o caminho do homem, de uma vida, rumo a Deus”. Idéia complementada por uma das frases proferidas por Ray Milland, o cientista do filme dirigido por Roger Corman: “Eu estou me aproximando dos deuses”.

Premissa não muito distante dessa é a do filme “Janela Indiscreta”, de Alfred Hitchcock, sobre um fotógrafo profissional que, ao ficar confinado em seu apartamento após quebrar a perna em um acidente de trabalho, se entretém espiando seus vizinhos do prédio à sua frente. Mas, como no cinema, nem toda espiada do fotógrafo é um momento de lazer e, por isso, ele acaba testemunhando um assassinato.


O que Hitchcock extrai dali, num dos seus mais célebres filmes, não é apenas o suspense que acabou caracterizando-o como mestre, mas também a problematização do papel do espectador no cinema. Problematização comprovada na inesquecível cena do encontro do fotógrafo, James Stewart, com o assassino.

O criminoso, antes de qualquer ação, se vira para o fotógrafo voyeur e diz: “O que você quer de mim?”. Stewart, que demora a reagir ao confronto, demonstra nada além de espanto com a abordagem questionadora, porque ele não estava ali para fazer justiça e testemunhar crime algum, ele só queria se divertir a olhar a rotina de seus vizinhos.


Hitchcock diz na cena que por mais que o espectador de cinema clame por sua inocência em qualquer atentado criminoso efetivado por um cineasta (Hitchcock, por exemplo, foi o maior encenador de crimes no cinema), na verdade ele exerce certa influência no “caso”, quer seja com o seu deleite, horror ou torpor.

A mesma pergunta que o assassino faz ao fotógrafo-voyeur deve ser feita aos amantes do cinema: o que um cinéfilo quer de um filme? Só não se deve perder de vista, ao emitir qualquer resposta, uma afirmação como a de Nietzsche: “quando se olha muito para um abismo, o abismo olha para você”.

A frase de Nietzsche, a cena do confronto no filme de Hitchcock, o delírio do cientista em “O Homem de Olhos de Raio-X” caminham pela velha história: as pessoas constantemente se olham e se julgam, mas se esquecem que são também constantemente julgadas pelo cinema.


Ser um bom cinéfilo definitivamente não é ver o maior número de filmes possíveis, não é ser uma espécie de maratonista ou um atleta cultural, cinéfilo é simplesmente um indivíduo capaz de ter seu olhar modificado pela influência de certas obras e reconhecer que ao se avaliar um filme ele também pode estar sendo julgado por ele. Bom cinéfilo, enfim, é aquele indivíduo que acredita ser o cinema não só outra atividade feita para entretenimento, mas sim uma arte indissociável da vida.

Talvez o cinema não seja a cura para nada, mas de certo é uma doença que deflagra sintomas e estabelece diagnósticos para as coisas da vida. E se o cinema é uma doença, então o cinéfilo talvez possa ser mesmo chamado de doente.

segunda-feira, 14 de julho de 2008

O QUE É O CINEMA?

PUBLICADO NA FOLHA DA REGIÃO NO DIA 06 DE JANEIRO DE 2008


Aí está uma pergunta que sempre nos pegamos a fazer. Muitos foram os pensadores que se propuseram a responder (de sociólogos a psicólogos, de filósofos aos próprios cineastas), mas nenhuma resposta parece satisfatória. Questão que nem esse artigo pretende esgotar, mas que serve para que notemos, afinal, o que nos fascina no cinema.

Já dizia o poeta não haver o amor, apenas suas provas. Acho que o mesmo vale pro cinema. Não existe uma entidade O CINEMA, apenas suas provas, ou seja, os filmes. Responder a questão “o que é o cinema?” é puxar na memória os filmes que amamos, pois não existe uma idéia de cinema, uma especificidade da arte. Há os filmes, essas provas de amor, há idéias de cinema e as singularidades de cada filme.

Partindo daí, creio ser a melhor definição para cinema, e também a mais nebulosa, uma de Jean-Luc Godard (sempre ele), talvez parafraseando seu mentor André Bazin: "o cinema não é uma arte, nem uma técnica, é um mistério".

Cinema é um mistério por permanecer como a arte do real. Não o real do tratamento de assuntos cotidianos, de ser a própria realidade a matéria prima da arte, mas pelo cinema ser o desenho deixado pela realidade na película.

Segundo o raciocínio de Bazin, amamos certos filmes por eles colocarem a câmera em lugares e em certas situações que não pudemos presenciar, mas que podemos testemunhar. O crítico francês gostava de fazer analogias do cinema com o véu de Verônica, "colocado no rosto do sofrimento humano", ou com as pegadas de Sexta-Feira que aterrorizava Robinson Crusoé, "não porque elas se pareçam com Sexta-Feira, mas porque foram realmente feitas por eles".

Por sua vez, o pensador Merleau-Ponty fez uso do cinema para firmar um ponto de vista sobre algumas teorias da psicologia: um indivíduo não revela sua exterioridade através de seu interior, mas sim este é revelado por seu exterior, pelos seus gestos e expressões.


Sendo o cinema, segundo Rogério Sganzerla, “ritmo e movimento, gesto e continuidade”, isso significa que a presença do ator e a delimitação de seu mundo pela câmera do diretor levam o espectador diretamente à verdade da alma humana, à verdade do cinema e da vida, concluindo ter o cinema não a função de preencher um buraco na parede, mas de ser uma janela sobre o mundo.

Como evidencia a denominação inglesa para a palavra filme (movie), o diferencial da arte sobre as outras é o movimento, essa ilusão ótica em 24 quadros estáticos por segundo que reproduz o movimento da vida. Verdade ou mentira? Pouco importa. Importa é a impressão do real, o véu de Verônica, as pegadas de Sexta-Feira.

Se essas são meras idéias, qual seria a prova, qual seria o filme a corresponder com elas? Eu diria que essa prova atende pelo título “Eu, um negro”, filme que o etnólogo francês Jean Rouch fez nos anos 50 ao levar sua câmera portátil para a Costa do Marfim no intuito de filmar a rotina de alguns jovens.


Rouch, porém, não pretendia fazer somente um documentário, pois a realidade em sua essência ia muito além do ato de capturar o cotidiano de meia dúzia de pessoas. Rouch era louco o suficiente para embarcar nas idéias de Bazin, torná-las materiais com seus filmes ao ponto de fazer dos jovens africanos atores, encorajando-os a representar suas próprias vidas e reinventá-las ao se tornarem Tarzan, Edward G. Robinson ou Dorothy Lamour.

Realizada em 1958, a obra de certo modo resolvia um impasse que desde cedo acompanhou o cinema: seria o cinema a arte da realidade pretendida pelos inventores do cinematógrafo, os Lumières, ou um truque de mágica, como nos filmes do ilusionista Georges Mélies? Como disse Godard (de novo), em texto sobre o filme de Rouch: "todo documentário tende à ficção, e toda ficção tende ao documentário".

Ao se tornarem Edward G. Robinson e Dorothy Lamour, os trabalhadores africanos do filme não se fizeram de farsantes e nem o filme se tornou menos verdadeiro, ao contrário, ao se reinventarem para a câmera, os “atores” realmente expuseram seu sentimentos. Ao pender para a ficção, Rouch documentou as almas dos seus personagens.

Em uma cena deflagradora, Robinson leva Dorothy para o baile. Eles bebem e danças após uma semana difícil de trabalho, dançam entre paredes decoradas por pinturas de casais negros dançando, imagens rústicas de cores tão vivas e destoantes como as do próprio filme.


Em meio a essas figuras na parede, há um cartaz de um filme estrelado por Marlon Brando. O que nos diz essas coisas? Assim como o astro branquelo se enfia e rouba a beleza das expressões artísticas locais, um turista italiano tira Dorothy dos braços de Robinson e a seduz com seu charme ocidental - como os heróis europeus e americanos seduziram os jovens filmados por Rouch ao ponto deles assumirem seus nomes.


O filme de Rouch tem muito desse espírito utópico de que o cinema pode ser importante, que o cinema pode dizer muito sobre nós mesmos e, até mesmo, como queria o cineasta Rainer W. Fassbinder, salvar-nos. "Eu, um negro" é minha resposta para a pergunta “o que é o cinema?” porque não é uma obra sobre as precariedades da vida de um lugarejo africano nem apenas sobre a feroz influência que o ocidente exerce sob a região.


"Eu, um negro" aborda questões como as levantadas acima, mas o faz contaminando cada minuto do filme com o senso de aventura e o calor passional de alguma fita do Tarzan com a atriz Dorothy Lamour. A vida caminha no filme de Rouch, mas caminha paralelamente pelas estradas do cinema.

O que é cinema? Cinema é o filme "Eu, um Negro", mas é também a chegada do trem dos Lumières ou as cabeças giratórias de Mélies; a história da França feita a estória de uma adolescente mimada em "Maria Antonieta", de Sophia Coppola, ou a estória da viagem entre mãe e filha feita a História da civilização européia no "Um Filme Falado", de Manuel de Oliveira. Bem, cinema é essa arte do real feito pela ilusão, esse eterno mistério.

segunda-feira, 30 de junho de 2008

OS MELHORES DO ANO DE 2007

PUBLICADO NA FOLHA DA REGIÃO NO DIA 30 DE DEZEMBRO DE 2007


Não foi um ano ruim para o cinema, mas também não foi um ano de grandes revelações. Os melhores filmes foram realizados por cineastas veteranos: Clint Eastwood mostrou, mais uma vez, porque é o último grande herói americano ao fazer os dois filmes sobre Iwo Jima e o francês Claude Chabrol manteve seu admirável ritmo de um filme por ano com “A Comédia do Poder”.

Foi também 2007 o ano da reafirmação de algumas promessas, como o cinema de James Gray, que deixou de ser o promissor realizador de “Caminho sem Volta” para firmar sua maturidade com “Os Donos da Noite”, e Sofia Coppola, que mostrou não ser somente a filha do diretor Francis Ford Coppola, mas uma artista com visão de mundo e cinema com sua versão para a vida de Maria Antonieta.

Neste ano, Abel Ferrara fez as pazes com o Brasil ao ter seu filme “Maria” exibido em nosso circuito comercial, enquanto o francês Alain Resnais provou que sua carreira não se resume aos “Hiroshima, meu Amor” e “O Ano Passado em Marienbad”.

Em uma lista de dez, os escolhidos foram:

1) Os Anjos Exterminadores


Noel Rosa disse certa vez ser a mulher o único sinônimo para o samba. Se a frase fosse atribuída a Jean-Claude Brisseau, realizador do filme, ele diria ser a mulher o único sinônimo possível para o cinema.

O que as mulheres escondem? O que esconde o cinema? São perguntas que o filme não se propõe a responder, pois o que interessa ao filme é mergulhar no abismo onde se enfiará o personagem central, o cineasta a fazer um filme sobre os desejos secretos das mulheres.

Nenhuma resposta, pois não há psicologismo que dê conta de tanta beleza que Brisseau impõe a cada cena. O cinema para Brisseau é como as portas pelas quais ele filma a nudez de suas atrizes: uma abertura a aprisionar o homem. O mistério da mulher e do cinema é o que justifica seu arrebatamento, é a graça de seu sensualismo.

2) A Conquista da Honra e Cartas de Iwo Jima


Clint Eastwood a fazer o serviço de arqueologia e antropologia em cima das histórias escondidas por trás da ilha japonesa de Iwo Jima em dois filmes. Um sob a ótica norte-americana, outro sob a ótica japonesa.

No “A Conquista da Honra”, partiu da impressão do mito e sua destruição - o cinema de John Ford e Samuel Fuller - para chegar ao cinema de Howard Hawks, em seu elogio à fraternidade masculina entre os soldados norte-americanos.

Em “Cartas de Iwo Jima” fez o movimento contrário. Procedeu em Hawks ao mostrar o nobre relacionamento entre os oficiais e recrutas japoneses e terminou na aspereza e iconoclastia de Fuller, quando passa a mostrar a tropa americana invadindo o forte japonês.

3) Maria


“Ver não com os olhos, mas com o coração” é o que diz um dos personagens do filme de Abel Ferrara, mas é uma frase que poderia ser atribuída ao próprio cineasta sobre o seu cinema, um cinema de vísceras, de uma passionalidade descomunal.

Em “Maria”, um cineasta lança seu filme sobre a ressurreição de Cristo, a atriz, que interpretara Maria Madalena, é seduzida por sua personagem e não consegue deixá-la enquanto um apresentador de um programa que discute teológica entra em crise após seu filho recém-nascido adoecer.

Essa tríplice narrativa, esse cinema de estilhaço, é o que conduz os homens e a mulher de Ferrara ao reencontro com a fé. Um filme para se ver com o coração, enfim.

4) Medos Privados em Lugares Públicos



Ao longo de sua carreira, Alain Resnais se especializou em filmes-labirintos: no início foram os labirintos da memória com “Hiroshima, meu Amor” ou “O ano passado em Marienbad”, e, recentemente, os labirintos de canções no musical “Amores Parisienses”.

Com seu último filme, o veterano francês investe em labirintos do coração, nas paixões dos personagens errantes que insistem em se distanciarem. Resnais se interessa aqui pelos descaminhos do coração, de amores afastados por um quarto dividido em dois, no início do filme, ou pela neve que se espalha na tela a cada transição das tramas que correm paralelamente. Labirintos que ainda nos fascinam.

5) A Comédia do Poder


Claude Chabrol mantém seu admirável ritmo com este filme. Substituiu elegantemente a perversa visão sobre a alta sociedade francesa de sua obra anterior, “A Dama de Honra”, para se debruçar em uma trama cheia de fraudes, corrupção na política. Enfim, deixou o privado para investigar o público.

6) Em Busca da Vida


O representante oriental da lista. Jia Zhang-Ke é dos maiores talentos surgidos na China. Influenciado pelo cinema de Michelangelo Antonioni, Jia vem refletindo sobre essa China do século XXI que abriu as portas para o capitalismo e a globalização acelerada. Jia ainda se firma como um dos realizadores a fazer bom uso do suporte digital, incorporando-o ao seu trabalho sem cair num experimentalismo estéril.

7) Planeta Terror


Este é o melhor exemplar fílmico de Robert Rodriguez, obra que dá amplitude ao sentido da palavra “política” no cinema. “Manifesto de um cinema inútil” poderia ser definido o filme, vide a obsessão de Rodriguez por elementos que para outros realizadores seriam considerados como mera futilidade: uma metralhadora no lugar da perna de uma mulher, um bandido que foge numa mini-moto, o cozinheiro mal-encarado obcecado pelo tempero perfeito para seu churrasco, etc.

Osama Bin-Laden e guerra nuclear são temas mencionados, mas que passam distante do interesse real do cineasta. “Planeta Terror” é político porque reafirma os valores caros ao cinema do texano, o valor do cinema classe B.

8) Zodíaco


David Fincher deixa de lado o “mundo bizarro” dos seus filmes anteriores e se enfia num ambiente sórdido encoberto pelo clima ameno da Califórnia e o espírito hippie da América setentista. O terror está corrompido por trás da normalidade nesta obra que herda os ensinamentos do suspense deixados por Alfred Hitchcock e Fritz Lang.

9) Possuídos


Um homem e uma mulher presos em uma casa pelo medo do ataque de insetos. Um filme trash? Um filme de conteúdo político evasivo? Certamente a falta de reviravoltas na história e o confinamento do filme no cenário único de um trailer à deriva no deserto afastaram muitos espectadores.

O cineasta William Friedkin não está aqui a fazer uma nova leitura do seu filme mais famoso “O Exorcista”, como muitos pensaram e o título brasileiro para “Bug” (inseto) sugeriu, mas sim preocupado em fazer sua câmera ser possuída pela neurose do casal de personagens. Um filme verdadeiramente perturbador.

10) Os Donos da Noite


James Gray faz um filme tradicional. Tradicional por pregar os valores familiares e também por cultuar um cinema de gênero policial anacrônico, na linha de “Operação França”, dirigido pelo 9º colocado, William Friedkin. Um cinema tradicionalista e personalíssimo, de um olhar muito específico sobre as coisas e pessoas.

domingo, 22 de junho de 2008

O DONO DA NOITE

PUBLICADO NA FOLHA DA REGIÃO NO DIA 23 DE DEZEMBRO DE 2007


A família é tudo no cinema de James Gray. Ela é o tema de sua devoção e o cinema do gênero policial sua vocação.

Era assim em seu primeiro longa-metragem, “Fuga para Odessa”, no qual o assassino profissional feito por Tim Roth deveria cumprir um duro trabalho em seu antigo bairro ao mesmo tempo em que tinha a mais difícil missão de se reaproximar da sua família.

Era assim em “Caminho sem Volta”, filme em que o recém-libertado presidiário interpretado por Mark Wahlberg desejava entrar na linha, mas encontraria exatamente numa linha ferroviária o início de sua nova derrocada criminosa, influenciada por seu primo, Joaquim Phoenix, e seu tio, James Caan.

Por esses rumos o cineasta delineou sua curta carreira. Caminhos traçados também por Joaquim Phoenix em “Os Donos da Noite”, terceiro filme de James Gray.


Phoenix é Bobby Green, o promissor gerente de uma boate mantida por um empresário russo. Ao lado de sua namorada, interpretada por Eva Mendes, ele leva uma vida à margem da sociedade.

Não diferente dos filmes anteriores, a família entra na história como um problema a ser resolvido e como motivo para o descabeçado Bobby assumir finalmente seu papel no seio familiar, aceitar suas responsabilidades.

O pai e o irmão dele são policiais, mas não é tudo. Eles planejam uma imensa apreensão de drogas exatamente na boate gerenciada por Bobby. Acompanhar a família ou seguir junto aos amigos? É esse o dilema que corrói o personagem de Phoenix em seu calvário.


O drama familiar e os dilemas morais mencionam um cinema fora de moda, antiquado. Pode até ser que essa história já foi contada um milhão de vezes, mas é a intensidade que conta a favor do cinema de Gray.

James Gray é um tradicionalista, mas não faz do cinema narrativo um fardo burocrático, não trata com desdém a falta de ineditismo de suas histórias. Ele tem convicção no seu trabalho, na capacidade de fazer de um universo tão batido um sopro de emoções.

Uma boate num filme de Gray não parece ou é uma boate, é uma válvula de escape. Um mafioso não se coloca como tal, ele é um homem comum. Um pai não age como um homem nascido de uma mente brilhante de algum roteirista, ele simplesmente age como um homem nessa condição.


Os cenários e personagens não são meramente figurativos, pois descrevem sentimentos. Paisagens sentimentais e atores que transparecem com suas presenças todos esses tormentos interiores dos personagens.

Não parece ser de interesse de James Gray dar uma lição de valores familiares com seu filme, mas, simplesmente, fazer o público compreender a força da corrente que os unem quando as coisas apertam.

Também não parecem muito importantes questões como “quem são os bandidos e os mocinhos” ou se uma determinada cena de perseguição de carros numa avenida é “eletrizante”.

Se o calvário de Bobby é tudo o que interessa ao filme, o realizador não mede esforços para que o espectador compreenda a posição ocupada pelo protagonista.


A cena onde Phoenix chora ajoelhado nas pernas de sua namorada após visitar seu irmão no hospital, depois dele ter sido baleado, deixa muito claro o que interessa ao cineasta.

Ele não filma a cena por um ângulo a reforçar a comoção do personagem. Nada de close-up em seus olhos lacrimosos. A uma distância considerável, vemos o ator entrar e cair diante da atriz. Entretanto, no momento de sua rendição, a câmera deixa-o de fora do enquadramento para se fixar na inesperada reação de Eva Mendes.

O que tem de importante nesse procedimento, nessa encenação? Ao deixar de investir no choro fácil de seu personagem, o realizador toma uma posição clara: se Phoenix expõe sua preocupação com o estado de seu irmão estando fora do quadro, tal recurso diz muito sobre o próprio papel que ele representa na sua família, o de excluído.


Quando centrado na vida atribulada de Bobby, o filme é narrado de forma insinuante, inebriante: os personagens e a câmera estão sempre em movimento. Quando Bobby vai de encontro à sua família, o filme prima pela imobilidade.

A família é o centro, esse ponto referencial estável, e para Bobby retomar seu papel no seio familiar, ele inevitavelmente deverá tomar a partido desse imobilismo. Deixar de fugir do enquadramento - sua agitação na boate, sua posição fora do quadro na cena do choro - para inscrever-se nele.

São essas especificidades que encantam no cinema de Gray, ou seja, o seu olhar - suas escolhas e o cuidado dado a cada detalhe - que faz seu cinema destoar tanto do que é feito atualmente no cinema industrial e também no independente.