segunda-feira, 25 de agosto de 2008

QUE HORAS SÃO?

PUBLICADO NA FOLHA DA REGIÃO NO DIA 10 DE FEVEREIRO DE 2008


Afinal, quando se vê um filme, o que se espera dele? Certas pessoas assistem a filmes contando com um bom entretenimento para o final de semana. Outras, para adquirir alguma bagagem para alguma questão.

Muitos buscam encontrar receitas para se viver ou respostas que não são encontradas no dia a dia, enquanto poucos não se satisfazem quando os filmes não vão ao encontro com suas concepções de inovações (estética, temática, conceitual).

O que é possível se achar quando se olha para certos filmes com uma bagagem cultural e intelectual imutável? O que se encontra ao se deparar com o cinema de um Otto Preminger? Don Weis? Michael Cimino?

Às vezes, para se justificar uma paixão por certos filmes não é suficiente a minúcia com que o cineasta executa uma cena ou a forma como ele faz a junção de dois planos, é preciso recorrer à “bodes expiatórios”, ou seja, aos famosos chavões.

É preciso falar da complexidade de personagem X, do conteúdo político subliminar ou do cunho filosófico implícito na narrativa, etc. Coisas que existem mais na mente de quem assiste do que nas imagens dos filmes.

Do outro lado, para justificar o desprezo por certos filmes, se julga obras simplesmente por não trazerem nada de novo sobre determinado tema, ou pior, menospreza-se filmes quando não se consegue enxergar a beleza das composições. Como se beleza significa-se apenas filmar cada paisagem como se fosse um cartão-postal.

Muitas vezes um filme funciona como um relógio no que concerne sua fruição. Por vezes, com um relógio, as pessoas se preocupam demais com seu ornamento, cores e dimensões dos ponteiros e se esquecem de olhar as horas.

Há cineastas que dão ao espectador apenas as horas, ou seja, o cinema em sua essência e classe. Um cinema que não há palavras pra se definir, há apenas o que se ver e sentir.

Cinema em que se nota certas coisas no andar do ator, no gesto. Cinema em que há coisas à vista e tantas outras escondidas, no qual essas coisas escondidas (sentimentos) são iluminadas exatamente quando aquelas que estão visíveis (os gestos) trabalham.

Basta uma lente absorvendo o ambiente de uma igreja seguida por um close-up de Clint Eastwood vestido de padre, com uma estranheza em sua voz ao dar o sermão, para que o espectador desconfie de que seu personagem não faz parte daquele ambiente, no filme “O Último Golpe”, dirigido por Michael Cimino em 1974.


Basta a câmera avançar em direção ao James Stewart, assobiando enquanto dirige o carro, vestindo chapéu de pesca e carregando uma vara, para sermos arremessados no mundo do advogado decadente em “Anatomia de um Crime”.

Cimino no primeiro caso e Preminger no segundo. Nenhum dos dois nos dá nada além de uma competente aula de execução. Não estão ali inventando a roda, mas ambos a utilizam de um modo como poucos a utilizaram.

Existe algo nesses filmes que o cineasta Nicholas Ray chamaria de “revelar algumas almas em pleno trabalho”, ou seja, uma impressão de frescor, uma impressão de tudo aquilo que foi encenado, filmado e editado sem nenhuma imposição, como se estivesse acontecendo à frente do espectador, num passe de mágica.

É a impressão que fica na cena de “Anatomia de um Crime” em que James Stewart toca piano enquanto espera o resultado do julgamento que pode lhe dar a redenção profissional que tanto lutou no decorrer do filme para conquistar.

É a impressão que se tem quando Donald O’Connor dança e troca de figurino, entra e sai por várias portas de um cenário no musical “É Deste que eu Gosto”, de Don Weis.


Àqueles que procuram filosofias, receitas de bolos ou qualquer outro tipo de satisfação sórdida, a dica para quando se deparar com filmes que dão apenas o “básico”, ou seja, o cinema, o melhor a fazer é cair fora, porque a paixão de certos cineastas é simplesmente a paixão pelo ofício, o cinema.

É uma paixão e uma arte em franca extinção, é verdade. Não há muitos cinéfilos que apreciam isso no cinema, nem cineastas que priorizam tal qualidade, denominada pelos franceses por “mise en scène”, ou seja, “a arte do que se coloca em cena”.

Não é um cinema que busca documentar alguma coisa, comunicar ou entreter, é um cinema que se preza em revelar a verdade inequívoca do cinema, essa arte de desnudar e modular sentimentos.

quinta-feira, 14 de agosto de 2008

POR UM CINEMA AUTORISTA

PUBLICADO NA FOLHA DA REGIÃO NO DIA 03 DE FEVEREIRO DE 2008


A “política de autores” foi criada por redatores da revista francesa Cahiers du Cinema no final dos anos 50 no intuito de valorizar a arte cinematográfica de cineastas que não eram considerados verdadeiros artistas em ambientes intelectuais.

Entre os defensores do manifesto, estavam figuras que depois se tornariam conhecidas exatamente por seus papéis de diretores de cinema, como François Truffaut e Jean-Luc Godard.

Mais de meio século após o início das discussões sobre autorismo no cinema, a “política de autores” fez tanto barulho que causou muitas imprecisões interpretativas a cerca de suas reais intenções.

Muitos contestaram a “política de autores” sob o pretexto de que o manifesto diminuía a importância da colaboração de outros profissionais na feitura de um filme - como o papel do roteirista, do diretor de fotografia ou do montador -, ou até mesmo que essa “política de autores” era uma bobagem incompatível com a linha de produção industrial que movia as engrenagens do cinema.

O problema desses argumentos dissonantes era que eles pareciam servir apenas para macular uma possível individualidade dos diretores inseridos no sistema hollywoodiano e, assim, escancarar o culto aos artistas tidos como “verdadeiros autores”, aqueles inseridos em escolas classificatórias do cinema ou os que desenvolveram suas próprias teorias para o ofício.


No primeiro caso, o alemão Friedrich Murnau tinha sua obra classificada dentro do “expressionismo alemão”, enquanto o soviético Serguei Eisenstein escreveu algumas antologias sobre a montagem no cinema.

Assim, a “política de autores” insurgiu contra uma idéia preconceituosa que colocava o cinema em dois pólos distintos e irreconciliáveis: de que o cinema ou aspirava à arte e as inovações (o surrealismo de um cinema como o praticado por Luis Buñuel entre a virada da década de 20 para a de 30) ou era apenas uma atividade lucrativa, um divertimento (simbolizado principalmente pela indústria norte-americana).

A “política de autores” não surgiu para ditar modas, mas como uma ferramenta útil na avaliação e na individualização do trabalho dos cineastas, que seria reconhecido não por seus valores temáticos, não pelas mensagens que poderiam ser pregadas, mas pela maneira como o realizador articula as idéias, conduz uma narrativa.

A maneira como os diretores de cinema conduziam seu trabalho recebeu dos franceses um termo próprio e apropriado: “mise-en-scène” (o pôr-se em cena). Pela mise en scène o autorismo no cinema não surgia como uma forma de depreciar o trabalho dos outros colaboradores de uma obra, mas de ressaltar a importância do diretor na administração dos valores de tais colaboradores na produção de um sentido, de uma unidade.

Jean-Luc Godard disse sobre o manifesto que a palavra importante não era “autores”, mas “política”. O que ele afirmava com isso era que, nos anos 50, não interessavam aos redatores da Cahiers du Cinema transformar o culto às estrelas de cinema no culto aos cineastas. Não interessavam os nomes, mas o método de trabalho de cada cineasta e a identidade que eles imprimiam em cada trabalho. Interessava mais a política porque a teoria servia na defesa de um ponto de vista, da afirmação de uma visão de cinema.

Se Alfred Hitchcock era considerado um mero confeiteiro nas rodinhas intelectuais, a “política de autores” era a ferramenta a mostrar que os “bolos” feitos por Hitchcock tinham uma marca indefectível.


Se um cineasta como Howard Hawks, pouco afeito aos grilhões dos gêneros de cinema, era recebido com a indiferença de que seu trabalho nada tinha de pessoal, a “política de autores” era o instrumento a revelar que cada comédia, faroeste, drama ou aventura dirigida pelo realizador se enchia de traços que demonstrava a visão do homem, do profissional.

No cinema contemporâneo, é comum encontrar o nome de qualquer diretor estreante surgido dos videoclipes, ou da televisão, junto ao vaidoso crédito “Um filme de...”, mesmo que esse trabalho seja dotado de uma falta de talento ou personalidade.

A “política de autores” não existe para contemplar tais distorções, mas exatamente por desfazê-las, pois o conceito sempre servirá de arma na defesa de cineastas talentosos e desprestigiados, na defesa dos gênios que são tratados por bestas.

No fundo, não interessa o nome do cineasta em destaque nos créditos de um filme, mas tentar responder à básica pergunta: “afinal, quem faz os filmes?”. Como dizia Howard Hawks: “é o diretor que narra uma história e, se for bom, deve ter seu próprio método para contá-la”. Enfim, o método é tudo no cinema.

segunda-feira, 4 de agosto de 2008

CINE-FILHO DA AMÉRICA

PUBLICADO NA FOLHA DA REGIÃO NO DIA 27 DE JANEIRO DE 2008


Se o neologismo cine-filho criado pelo crítico Serge Daney servia-lhe para destacar a importância do cinema na sua formação e de mostrar de que maneira o percurso do cinema moderno fora também o seu, eu diria ser essa expressão aplicável também a muitos cinéfilos, ou cine-filhos, criados em empoeiradas locadoras pós-80.

A principal diferença da geração que se criou em vídeos-locadoras das anteriores, formadas em Cinematecas ou cineclubes, é a incomparável superioridade na formação intelectual adquirida pela geração de Daney.

É uma superioridade evidente pelo modo como o crítico se formou, pois quando teve a chance de mergulhar nas obras de certos cineastas, certamente ele não fez a imersão pelas metades ou com lacunas, pois as programações oferecidas nos cinemas parisienses deram a ele uma visão concreta, menos enevoada.

Aos cine-filhos da era do VHS, “precariedade” é a palavra-chave para a compreensão desse nebuloso período. A precariedade do VHS é também minha precariedade, minha defasagem em relação a obras de certos realizadores, de compreensão de certos filmes.

Precariedade imposta pela própria maneira como as fitas de VHS eram concebidas - as janelas de exibição das fitas privilegiavam o formato espremido da TV e não as proporções do cinema - e do modo como a história do cinema foi contada por intermédio das distribuidoras de vídeo.

As histórias do cinema nos foram dadas aos pedaços. Para um cine-filho da era do VHS, o cinema não começava com Lumière e sim com as fitas de Chuck Norris ou da série América Ninja. Para um cine-filho da era do VHS, o grande cinema não era Godard e sim Highlander.


A verdade é que os sobreviventes da geração do vídeo, os que restaram, construíram as histórias do cinema na raça, na vontade, no amor pela arte vencendo pelo cansaço. E grande parte do conhecido, o grande responsável por nossa formação, o nosso "cine-pai" certamente foi uma distribuidora como a América Vídeo. Aquela das capinhas em cor azul.

Como um filho, ou cine-filho, da América Vídeo, eu diria que todo meu aprendizado e amadurecimento passam pelas fitas emboloradas distribuídas pela empresa. Descobri o cinema pelos filmes de luta estrelados por Jean-Claude Van Damme. "Garantia de Morte", "Cyborg" ou "O Grande Dragão Branco" eram algumas das obras.

Da paixão pelos filmes de Van Damme, que nutria na infância, descobri no final da adolescência que amava "O Ano do Dragão", obra de Michael Cimino.

Com este filme, dei conta também que toda a obsessão do personagem central do filme, um policial disposto a consertar toda a história dos EUA, era também minha obsessão de querer ver todos os filmes do mundo, de refazer o percurso histórico do cinema a qualquer custo.

De "O Ano do Dragão", encontrei o filme "Os Amantes", obra essencial e dos raros feitos por John Cassavetes que foi lançado em vídeo.

A loucura da personagem de Gena Rowlands nesse filme, que levava sempre mais um animal de estimação para dentro da casa de seu irmão solitário, fazendo do lugar uma arca de Noé, não era muito diferente do ritual cinéfilo de sempre trazer mais uma fita de vídeo para dentro de casa, mesmo não tendo mais nenhum espaço sobrando na estante.

O que os filmes de Van Damme, os dirigidos por Cimino e Cassavetes tinham em comum era o fato de terem sido lançados pelo marginal selo.


O que se concluí dessas memórias um tanto desmemoriadas da era do VHS é que cada passo dado na afirmação de valores, de uma idéia de cinema em evolução, todo o caminhar se fez pelo auxílio das fitas da América Vídeo.

A precariedade do vídeo, as raras descobertas, a decadência do selo, o crepúsculo desses tempos... Toda essa história é também a minha.