quarta-feira, 28 de maio de 2008

O REGRESSO COMO SALVAÇÃO

PUBLICADO NA FOLHA DA REGIÃO NO DIA 18 DE NOVEMBRO DE 2007


Eu vi o filme “As 4 Aventuras de Reinette e Mirabelle” no cinema, numa pausa entre as sessões da Mostra de Cinema de São Paulo no ano de 2005. O filme que Eric Rohmer dirigiu em 1987 fazia parte das constantes reprises promovidas pelo falecido Top Cine.

Nesse meu primeiro contato com a obra de Rohmer, anotei algumas palavras sobre o filme. Impressionara, sobretudo, o modo como Rohmer dispunha uma história aparentemente simplória - o encontro entre uma garota da cidade (uma etnologista) e outra da fazenda (uma pintora) - com o intuito de pensar algo muito maior, o próprio ofício.

Pareceu-me na época que o cineasta queria dizer ser o cinema o passo evolutivo nas artes das imagens, transição feita por meio da reunião entre o artesanal (o campo, a pintura) com o industrial (a cidade, o cinema).

Após ter visto cerca de meia dúzia dos filmes do cineasta, num corpo de mais de cinqüenta trabalhos, e revisto “As 4 Aventuras de Reinette e Mirabelle” em dvd, diria que tanto a limpidez da descrição quanto o ensaio sobre a própria arte mantiveram-se intactos.


Uma situação e um diálogo de outro filme do cineasta, “O Raio Verde”, ajuda-nos a compreender a beleza por trás da trivialidade que emana na obra do realizador.

Na situação, numa discussão sobre os anseios amorosos, uma amiga diz para a outra que ela não a conhece o suficiente para se intrometer na sua vida. Eis que a moça retruca ao dizer conhecê-la o suficiente por meio daquilo que ela aparenta, seus gestos e postura.

No diálogo, uma moça pergunta para o filho de sua irmã o porquê dele achar a Irlanda um país interessante, a criança responde que gosta de lá por sua mãe lhe falar tão bem do lugar.

O que os dois momentos revelam de importante sobre o cinema de Rohmer é o quanto a aparência pode dizer sobre o caráter de alguém, ou seja, sobre ser a encenação um instrumento essencial do cinema e, ao mesmo tempo, como a expressividade desse mecanismo se faz por intermédio da fala, denunciando o gosto do artista por um aspecto mais teatral do cinema.

As quatro aventuras do título mencionam os quatros episódios claramente divididos na narrativa: “A Hora Azul”, “O Garçom do Café”, “O Mendigo, a Cleptomaníaca e a Trapaceira” e “A Venda de um Quadro”.

Na primeira parte, Mirabelle conhece e recebe a ajuda de Reinette quando fura o pneu de sua bicicleta ao fazer um passeio no campo. As duas se tornam amigas e Mirabelle passa uns dias na fazenda de Reinette a fim de conhecer a mítica hora azul.


A hora azul é o minuto antes da aurora do dia onde se pode contemplar a natureza no mais absoluto silêncio; é o momento em que os animais noturnos se calam para dormir e os animais diurnos ainda não acordaram. O episódio é um elogio ao cinema de Roberto Rossellini, ao filme “Stromboli”.

A exaltação manifestada na expressão de Mirabelle ao finalmente contemplar a “hora azul” é digna do momento de epifania presenciado por Ingrid Bergman no filme italiano, quando observa a beleza e a fúria da natureza na erupção de um vulcão.

Ainda neste episódio, Reinette mostra uma de suas pinturas para Mirabelle e diz a ela como uma diminuta formiga desenhada no quadro é o que mais a encanta naquele trabalho. A obsessão da pintora pelo detalhe revela a magia da arte de Rohmer, a de converter uma particularidade no específico de sua arte.

O filme prossegue e no episódio seguinte as moças estão em Paris, onde marcam de se encontrar em uma cafeteria no final da tarde. Reinette mal conhece a cidade e o trabalho de Rohmer aqui consiste em dar vazão ao temor surrealista da camponesa em viver num ambiente dinâmico.

O desenho da formiga ganha, no filme, a forma de dois homens a quem a moça recorre para se informar sobre a localidade da cafeteria, homens que protagonizam uma desproporcional e insólita disputa para ver quem a informa melhor.


Outra formiga nessa história é o garçom psicótico que não aceita o pagamento do café com uma nota alta e pensa ser Reinette a trapaceira que lhe dará o calote.

Entre os mal-entendidos com o garçom, o diretor põe em crise os mecanismos próprios de seu cinema (a fala e os gestos), estendendo-a para o terceiro episódio:

Se o garçom não acredita no que Reinette diz e lhe mostra, será ela a mulher enganada no decorrer da esquete no qual uma trapaceira encena na estação de trem uma situação em que teria perdido seus pertences e necessitaria de dinheiro para retornar a sua casa.

Num mundo onde a pureza da encenação perdeu o valor, como o cinema pode restituir a estima, o encantamento? A resposta é apresentada no último episódio quando Rohmer faz suas protagonistas regressarem ao cinema silencioso com o intuito de vender um dos quadros de Reinette a um marchand aproveitador.


O encanto do presente está no ato de se olhar para trás: na contemplação da natureza e seu silêncio na “A Hora Azul”, na commedia dell’arte predominante nas confusões entre a moça e o garçom, no cinema mudo do último episódio. Para Rohmer, o regresso é a salvação da arte.

quinta-feira, 22 de maio de 2008

O HORROR DO MÓRBIDO PELO DA NORMALIDADE

PUBLICADO NA FOLHA DA REGIÃO NO DIA 04 DE NOVEMBRO DE 2007


O grande segredo para a criação de um bom filme de gêneros como o suspense está na capacidade do realizador em extrair o horror da banalidade, do ordinário.

Nos primórdios do cinema sonoro, o cineasta Fritz Lang não fez o público pular das poltronas ao mostrar cirurgicamente as ações de um assassino de crianças no filme “M”, de 1931, pelo contrário, instalou o medo no espectador simplesmente ao colocar o ator Peter Lorre, que fazia o psicopata, para assobiar uma popular cantiga infantil.

Alfred Hitchcock acompanhou os ensinamentos do mestre alemão ao elaborar suas cenas de suspense partindo de cenários triviais ou objetos domésticos, como o hotel à beira da estrada em “Psicose” ou um assassinato praticado com o uso de uma faca de cozinha no filme “Sabotagem”.


David Fincher se especializou no gênero de suspense, fez filmes que tanto extrapolavam no horror ensangüentado (“Alien 3”) quanto investiu na reinvenção dos filmes de serial-killer (“Seven”) e brincou com o suspense mais psicológico (“O Quarto do Pânico”).

É um cineasta familiarizado com o gênero, mas que antes nunca havia se interessado pela lógica dos filmes de Fritz Lang ou Hitchcock.

Como o realizador alemão ou o inglês, Fincher sempre utilizou o horror de seus filmes para promover uma reflexão moral. O assassino de “Seven”, por exemplo, executava pessoas que cometiam um dos sete pecados capitais, enquanto o anti-herói feito por Brad Pitt no “Clube da Luta” criara um grupo terrorista com o intuito de demolir os pilares de uma sociedade contemporânea consumista, como os prédios de empresas de cartão de créditos.


Anteriormente, a moral do cineasta fora sempre refletida por uma estética masoquista, mórbida. O horror, para ele, estava intimamente conectado a uma sociedade igualmente podre. Podridão expressada no gosto exagerado por cenários que mais se pareciam com necrotérios - o apartamento do assassino de “Seven”, a prisão do terceiro episódio de “Alien”, a casa em ruínas do cara de “Clube da Luta”.

O estilo pesado do cineasta amadureceu, algo que já dava sinais com o filme “Vidas em Jogo”, quando filmou a podridão pelas frestas da decadente mansão do rico personagem de Michael Douglas. O horror ali não mais derivava tanto do mórbido, mas o mórbido, a irrealidade, que irrompia da normalidade.

“Zodíaco” é o melhor trabalho do cineasta até então, resultado desse amadurecimento estético-moral.


Como em “Seven”, o horror manifesta-se nos atos de um assassino em série, porém, não está no cerne da narrativa a descoberta de sua identidade ou motivações.

As dimensões do horror aqui são abstratas, na medida em que o sentimento se espalha e contamina os meios de comunicação de massa, utilizado pelo assassino para promover o jogo que propõe, o de caçar pessoas ordinárias, sem qualquer interesse específico por elas.

Tanto a mídia, que serve de arma para o psicopata, quanto a tranqüilidade do estilo de vida norte-americano, alvo do assassino, são questões que atraíam Fincher e ganham, aqui, em profundidade sensorial.

O suspense não mais está no mórbido, situado naqueles cenários grotescos filmados com uma iluminação morgue dos filmes antecedentes do realizador. O suspense está em “Zodíaco” como estava para Lang ou Hitchcock, corrompido num táxi estacionado em alguma esquina noturna ou presente em um piquenique romântico à beira de um lago ensolarado.


Fincher espalha o terror e o subdivide em tramas paralelas. Tem a história do policial (Mark Ruffalo), entediado com seu serviço igual ao ricaço de “Vidas em Jogo”.

Há também a do cartunista (Jake Gyllenhaal), que assim como o policial feito por Morgan Freeman em “Seven”, é obcecado por fazer arqueologia em cima dos crimes do assassino à partir de pesquisas em bibliotecas e em arquivos policiais.

O horror se espalha pela narrativa e também perverte cada extremidade e profundidade dos enquadramentos. A primeira cena de assassinato, por exemplo, é encenada em um estacionamento usado pelo casal de vítimas para namorar, mas ela é filmada de tal modo como se Fincher situasse-a em um matadouro.


Ao retirar pavor de uma paisagem amena como os arredores de São Francisco, David Fincher seguiu os desafios de grandes mestres e fez um belo filme no qual o horror foi interiorizado de uma maneira como se o diretor construísse uma extensão da cena de “Alien 3” onde a tenente Ripley descobre carregar um bebê alienígena em seu ventre.

domingo, 18 de maio de 2008

ENTRE A DILUIÇÃO E A INVENÇÃO

PUBLICADO NA FOLHA DA REGIÃO NO DIA 28 DE OUTUBRO DE 2007

Dentre milhares das histórias em quadrinhos adaptadas para o cinema, existem fimes dos mais variados tipos.

Há casos como os dois primeiros da saga de Batman, no qual o cineasta Tim Burton canalizou a mitologia do homem-morcego para seu mundo, habitado por criaturas marginalizadas a viver num mundo tão soturno quanto as suas almas.

Existiram filmes como o primeiro Superman, em que o cineasta Richard Donner transpôs a saga do herói da forma mais respeitosa possível. Tom que impulsionou o tratamento dos três filmes sobre os mutantes de “X-Men”.


As porcarias também foram muitas, da “clássica” versão de “Capitão América” ao moderno “O Demolidor” e também as nulidades, as versões para “O Justiceiro”, que complementam o vasto cardápio.

Da ousadia do italiano Mario Bava com “Perigo Diabolik” para as inconseqüências dos dois filmes sobre “O Quarteto Fantástico”, os filmes de super-heróis não só se firmou como um subgênero rentável como, por conseqüência, se diluiu.

Se há uma única adaptação de qualquer história em quadrinhos que reflete esse histórico, esta seria a do “Homem-Aranha”, que chegou ao terceiro episódio mantendo o mesmo espírito do primeiro exemplar.


Nenhum dos filmes da série pode ser alcunhado de obra-prima, como o trabalho de Burton, como porcaria ou mera diluição.

O trabalho de Raimi é parecido com “O Quarteto Fantástico” em sua despretensão, mas a adição da consciência no trato de um produto ultra-saturado e pasteurizado, levou o realizador a embutir nos filmes do “Homem-Aranha” um espírito de deboche que muito se espelha no terceiro episódio de Superman, dirigido por Richard Lester.

Por esse quesito,“Homem-Aranha 3” é o melhor dos três filmes sobre o aracnídeo. A colocação surpreende porque o filme dava toda a pinta que poderia ser uma bomba: por ser o terceiro episódio, não se estranharia caso o resultado fosse um longa-metragem sem fôlego, repetidor de fórmulas.


Dos piores pressentimentos que cercavam a feitura do filme, muito ele lembrava o carnavalesco “Batman e Robin”, de Joel Schumacher, no uso de muitos personagens secundários e sub-tramas, além do excesso de vilões - Venom, Homem-Areia e Duende Macabro.

Porém, Sam Raimi sempre foi um hábil cineasta em revigorar ou parodiar outros filmes e gêneros - a trilogia “Evil Dead” e toda tautologia do gênero de horror, “Rápida e Mortal” e as regras do faroeste espaguete, “Um Plano Simples” e a conversão do clima noir - e, como conhecedor das “regras do jogo”, o realizador é capaz de trabalhar na tênue linha que separa a diluição da invenção.

O iniciar da história e a explicação do surgimento do Homem-Aranha muito limitou o primeiro filme, no qual Raimi trabalhou com amarras bem atadas narrativamente. Já no segundo episódio, pôde-se notar uma maior intimidade do cineasta, que aglomerou diversos elementos caros ao seu cinema - o humor adolescente, o horror macarrônico, o descaramento da atuação de Bruce Campbell, em sua rápida aparição.

Com a mitologia do herói bem estabelecida e a solidez da franquia, restou Sam Raimi fazer do terceiro capítulo um trabalho mais desenvolto naquela linha entre a diluição e a invenção.

No campo da diluição, tem-se o personagem Peter Parker (Tobey Maguire) seduzido pela fama que, finalmente, atingiu o herói que representa e, também, o cenário da cidade de Nova York poluído com outdoors eletrônicos que mostram fotos e animações do Homem-Aranha.

No campo da invenção, o viés debochado no trato do herói como um ícone saturado põe em crise o jogo de espelhos que desvirtuam o foco do iludido Peter. O foco é desviado, inclusive, pela narrativa do cineasta, que envolve a narrativa num clima de “Os Embalos de Sábado à Noite” quando o protagonista é contaminado pelos efeitos colaterais da roupa negra que usa e o transforma num emo.

“Homem-Aranha 3” nem é engessado como o terceiro episódio dos mutantes de X-Men nem dá vexame como os últimos filmes do homem-morcego. Entre os extremos, o terceiro episódio do aracnídeo se prova uma bela surpresa, pois revitaliza a energia dos episódios anteriores.

quinta-feira, 15 de maio de 2008

RALO NÃO TÃO FEDIDO

PUBLICADO NA FOLHA DA REGIÃO NO DIA 21 DE OUTUBRO DE 2007


Construir um filme todo a partir de um personagem odioso e fazer o público cúmplice de suas ações não é uma questão nova no cinema, mas é esse o ponto de partida do filme “O Cheiro do Ralo”, segundo longa-metragem dirigido por Heitor Dhalia.

O ser desprezível do filme é Lourenço, o único personagem a possuir um nome na película. Lourenço mantém uma loja de objetos usados e a trata como seu reino: lugar onde manda dar meia volta e pegar novamente um ônibus qualquer interessado em vender alguma máquina pesadíssima. Faz isso só para ver o indivíduo se ferrar.

Em compensação, é seduzido por qualquer panaca que demonstre estar em sintonia com ele e que deseje vender coisas inúteis ou inusitadas, como uma perna mecânica ou um olho humano.


O ralo mal-cheiroso do título não é apenas o ralo do banheiro que fica ao fundo da loja de Lourenço, é uma metáfora para o fedor do próprio personagem. A merda impregnada no seu reino é, no fundo, a materialização da moral desse personagem que sonha com o dia em que comprará a bunda da garçonete (Paula Braun) que trabalha no boteco freqüentado diariamente por ele.

Como tornar o público refém desse personagem, fazê-lo gostar dele e ser cúmplice dos seus atos? As respostas seriam encontradas facilmente no desempenho de Selton Mello, que encarnou o papel de Lourenço, se não fosse a covardia da direção de Dhalia.

Em poucas vezes se viu Selton Mello tão bem em um filme. É um ator que interpretou muitos papéis brilhantemente, mas o seu Lourenço não é como o trapaceiro simpático da série “O Auto da Compadecida” nem um resumo do truculento marginal de “Garotas do ABC”, ele é a síntese disso tudo.


Selton Mello acredita na cafonice do seu personagem, em seu humor hostil, nas suas explosões e contensão. No filme, Selton Mello está com aquele cara insuportável, ele é ele, mas o filme parece hesitar nessa adesão. E nesse ponto a obra morre.

Enquanto Mello entra de cabeça na miséria, no ralo do protagonista, mostrando pouco se importar com o cheiro de merda que possa contaminá-lo, o filme se põe em posição superior ao personagem.

As coisas começam bem. A imagem que abre o filme é um plano-seqüência dos glúteos da garçonete, que caminha até o bar onde se encontra Lourenço. O plano dá a entender que o cineasta está com o personagem, acompanha-o em sua obsessão.


Provavelmente foi Charles Bukowski que afirmou ser a bunda (feminina, é claro) a cara da alma do sexo. Na imagem inicial do filme, o cineasta parecia embarcar nas idéias insanas do escritor, porém, esse plano contínuo é apenas figurativo.

Dhalia não está com Lourenço, pois o plano existe simplesmente para mostrar a perversão do personagem e fazer prosseguir a idéia de que ele compraria aquela bunda, como se fosse um objeto de sua loja.

O que se segue a esse promissor plano inicial é um encadeamento de imagens, de idéias, que dão a entender que em nenhum momento as mãos do cineasta se sujarão como as de Lourenço.

Há um momento esclarecedor nesse aspecto: nas cenas de negociação, o cineasta insiste em mostrar um pôster do filme “The Getaway”. Qual a finalidade disso? A explicação surge adiante, quando um rapaz tenta vender, sem sucesso, um maço de cigarros autografado por Steve McQueen, o astro do cartaz.


Dhalia está acima do personagem, não por acaso mostra constantemente aquele pôster antes da cena chave. O realizador conhece o ator e o filme “The Getaway”. Lourenço, em sua abjeção, não.

Diferente de Martin Scorsese e Abel Ferrara, dois cineastas que enfrentaram as mesmas dificuldades de se trabalhar um personagem odioso, não há sintonia entre o objeto filmado e quem o filme em “O Cheiro do Ralo”. Dhalia não mantém cumplicidade com Lourenço, o que torna difícil embarcar na fetidez do personagem.

Scorsese, em 1983, fez “O Rei da Comédia”, filme tão hostil quanto seu personagem, um aspirante à comediante, sem talento e escrúpulos (Robert De Niro), que seqüestra seu ídolo (Jerry Lewis) no intuito de substituí-lo em seu programa televisivo.


Por sua vez, Ferrara, em 1992, acompanhou, sordidamente, as aventuras dopadas do policial marginal interpretado por Harvey Keitel em “Vício Frenético”.

Enquanto Scorsese e Ferrara contaminaram seus filmes com os espíritos dos seus protagonistas, o ralo de Heitor Dhalia não se mostra tão fétido quanto o de Lourenço.

Faltou à Dhalia chafurdar na lama com Lourenço para dali extrair uma beleza torta, mas o realizador preferiu creditar as nádegas da garçonete como mero objeto e efetivar o caráter do seu personagem como um homem desprezível. Colocando-se acima de Lourenço, o resultado do filme é tão diminuto quanto o caráter do protagonista.

domingo, 11 de maio de 2008

FILME DE GUERRA À BRASILEIRA

PUBLICADO NA FOLHA DA REGIÃO NO DIA 14 DE OUTUBRO DE 2007


O problema do filme “Tropa de Elite”, como os que cercam as análises da maioria dos filmes brasileiros que recebem certa visibilidade na mídia, está menos na própria obra do que nas palavras de muitos dos sociólogos, policiais, economistas ou teólogos que se propuseram a fazer a análise do longa-metragem pelos mais distintos escopos.

O engraçado é que de tanto se procurar no filme um discurso de estimulo a prática da tortura, a glorificação da violência ou a falta de humanização dos traficantes (discursos que borbulham na imprensa sobre o filme), os ilustres pensadores desviaram o foco e se esqueceram de mirar os discursos para a própria obra.

Deve haver algum artigo escondido num cabeçalho de página das leis de incentivo do audiovisual brasileiro que obrigam todas as obras realizadas no Brasil a fazer do cinema um instrumento sociológico ou uma arte que prime por algum ponto de vista mais respeitável do que o de um policial truculento.

Se tal artigo foi escrito em alguma pedra, para sorte do espectador o cineasta José Padilha não leu ou, simplesmente, desobedeceu. “Tropa de Elite” não é uma monografia sobre o abismo social do país e muito menos um tratado humanista, é um árido filme de guerra.


Padilha não poderia ter optado por um estilo mais feliz do que a do filme “Os Doze Condenados”, feito por Robert Aldrich em 1967, para narrar os conflitos entre policia e traficantes que assolam os morros cariocas.

Dificilmente em um documentário ou num melodrama de denúncia essa espinhosa questão seria abordada de forma satisfatória, mas no subgênero de guerra a catarse que se provoca tem a capacidade de fazer o espectador compartilhar a adrenalina das investidas policiais no morro, o burlesco da atuação dos comandos policiais no trato da burocracia ou o terror da tortura aplicada pela policia até a retaliação do tráfico.

Padilha dá ao espectador o que este deveria esperar do cinema, que é o efeito moral e purificador da tragédia clássica conceituada por Aristóteles. O pensador grego também está presente na estruturação do filme em três atos bem delineados.


Seria então “Tropa de Elite” um filme reacionário, como muitos intelectuais andam reduzindo a obra? O recito de Padilha pode ser arcaico, mas ele é tão consciente disso quanto o capitão Nascimento (Wagner Moura), oficial do BOPE no filme, é em relação ao trabalho sujo que realiza na corporação policial - não por acaso o personagem deseja deixar a tropa.

Por essa autoconsciência é errado dizer que o filme glorifica o BOPE. Padilha, ao contrário, faz do batalhão especial simplesmente o ponto de mediação e fricção entre a classe média e o tráfico de drogas, a corporação policial e as instituições políticas.

O uniforme preto, em luto, usado pelo BOPE, o símbolo da caveira, o hino de guerra em forma de música, da banda Tihuana, que abre o filme e o fato de um dos personagens levar a vida dupla de universitário de Direito e aspirante policial são alguns dos elementos que reforçam a idéia de que o BOPE nada mais é, no filme, do que um antivírus danoso criado pela própria sociedade.


A figura de Wagner Moura, que inclusive narra didaticamente o que ocorre no filme, representa o ponto de apoio dessa gangorra, os olhos desencantados de Nascimento são os olhos de Padilha no filme.

Como Lee Marvin no filme “Os Doze Condenados”, Moura é o responsável por produzir aquele efeito aristotélico, moral e purificador, que acomete o espectador ao término da projeção.

A visão de José Padilha é cruel assim mesmo: não poupa os jovens de classe média que colaboram em ONGs e financiam o tráfico de drogas, nem os traficantes e muito menos os policiais, incluindo os do BOPE.


É uma visão apocalíptica comprometida em diagnosticar uma única verdade, a de que não existem anjos nas trincheiras.

“Tropa de Elite” não é uma obra-prima - o excesso de didatismo na narração e alguns diálogos meramente panfletários impedem distanciam a obra dessa classificação -, mas, ao menos, é um filme que reflete sobre certas questões não por um viés acadêmico, ou monográfico, e sim por uma chave estritamente cinematográfica.

terça-feira, 6 de maio de 2008

A VERDADE NO FALSO

PUBLICADO NA FOLHA DA REGIÃO NO DIA 07 DE OUTUBRO DE 2007


Contra o verdadeiro blefe que é “Os Infiltrados”, há “Viver e Morrer em Los Angeles”, filme que funciona como uma espécie de antídoto.

A grandeza do “contraveneno” dirigido por William Friedkin em 1985 é resultante da sabedoria desse cineasta (conhecido pelos sucessos de “O Exorcista” e “Operação França”) em trabalhar a idéia da falsificação - dos dólares, que é o mote do filme - através de todas as camadas possíveis.

O trabalho do realizador aqui é o de contaminar cada cena, cada passo dos atores, cada corte de câmera, com o mundo de duplos em que vivem os personagens do filme.


O enredo gira em torno, praticamente, da rotina de um agente federal (William Petersen) no encalço de um falsificador (Willem Dafoe) que matou seu parceiro, porém, a falsificação não se encontra isolada nessa trama das notas.

A falsificação está lá, no início, quando um homem-bomba se disfarça de garçom para invadir o prédio protegido pelos agentes do filme. Ela está também no pulo suicida do agente, pulo que logo se descobre tratar da prática do base-jump. Ou seja, um falso-pulo alimentado por uma trapaceira montagem cinematográfica.

A falsificação está, é claro, nas notas, estigmatizadas como arte, elevada a tal condição pelo artista plástico e psicopata, o vilão do filme.


A falsificação é justificada, contemplada e refletida em uma cena aparentemente sem propósito no filme, cena no qual o vilão assiste ao ensaio de teatro encenado por sua namorada.

O tema é presenciado nessa cena como se o filme olhasse a si mesmo no espelho: Dafoe contempla a apresentação de sua namorada, fantasiada e maquiada (logo, falsificada) como todos os outros integrantes do elenco. As coisas se desenrolam e não se sabe ao certo se o vilão olha para um homem ou uma mulher.


O tom homoerótico da cena é uma réplica anuviada de qualquer seqüência noturna do polêmico filme “Parceiros da Noite”, obra de Friedkin no qual Al Pacino viveu um policial que investiga um crime em meio a grupos homossexuais.

O ato de falsificar é expansivo, sai da trama para afetar também o enquadramento, exemplificado na cena em que a câmera filma dois personagens conversando através de uma divisória com janela que tem o formato similar ao cinemascope.

Como “Viver e Morrer em Los Angeles” foi filmado na proporção menos retangular, de 1.85:1, o enquadramento dessa cena se “falsifica” para outro formato, mais panorâmico, em torno dos 2.35:1, formato que caracteriza o cinemascope.


Em meio a tantas coisas falsas, há a personagem da informante da polícia, Debra Feuer, a única pessoa verdadeira do filme. É dela a constante reflexão: “as estrelas são os olhos de Deus”, frase aparentemente sem sentido que, no fundo, a coloca como os olhos do diretor em cena.


Verdadeiro também é o resultado obtido por William Friedkin. Em meio a falsificações e falsificadores, o cineasta fez um filme autêntico, incluindo ainda uma duradoura seqüência de perseguição de carros que muitos intuíram ser mera imitação da famosa perseguição policial contida em outro filme seu, “Operação França”.


Ao tirar a verdade do falso, o realizador faz como seus personagens na fuga dos vilões: mesmo andando na contramão, realiza um grande filme.

sábado, 3 de maio de 2008

CRÍTICA DE INVENÇÃO

PUBLICADO NA FOLHA DA REGIÃO NO DIA 30 DE SETEMBRO DE 2007



Se o crítico de cinema é, como queria Jean-Luc Godard, nada mais do que um soldado que atira contra o próprio regimento, Jairo Ferreira foi um dos exímios atiradores de elite que serviram à crítica brasileira.

Com a palavra de ordem disseminando o tal jornalismo cultural, nada melhor do que retornar às raízes de uma crítica cinematográfica com a leitura dos textos de Jairo Ferreira.

O livro “Cinema de Invenção”, reeditado pela editora Limiar, é um misto de ensaio com poesia, recortes jornalísticos, trechos de entrevistas e anotações pessoais sobre o cinema e os cineastas que assolaram São Paulo no final dos anos 60, o cinema Boca de Lixo, marginal ou como Jairo denominaria: o cinema de invenção.

A época vivenciada e documentada pelo crítico foi um período no qual os cineastas se aprimoravam em seus ofícios na medida em que iam fazendo filmes e os críticos e cinéfilos se formavam quando viam os filmes e escreviam sobre eles. Não havia cursos ou universidades especializadas, mas existia o essencial: o cinema.

Cineastas e críticos entravam, como diria o próprio Jairo, em pura sintonia intergaláctica e por essa ligação que o livro se divide em capítulos dedicados aos cineastas como Rogério Sganzerla, José Mojica Marins (mais conhecido por seu personagem Zé do Caixão), Glauber Rocha e Júlio Bressane.

O próprio Jairo Ferreira se torna personagem do livro quando escreve sobre suas experiências na realização de curtas, médias e longas-metragens. Além de diretor de cinema, o autor colaborou como roteirista, fotógrafo de cena e compositor de trilha sonora em diversos filmes.


Pode-se julgar Jairo Ferreira de ser extremamente parcial em seus textos, de fazer a defesa de um ambiente cinematográfico que era também o seu habitat, de se apropriar sem delongas de citações alheias, mas nunca se pode julgá-lo por ser insosso como aquilo que pode ser lido atualmente nos veículos impressos.

Jairo Ferreira não fazia guia de consumo ou um jornalismo cultural daqueles que grita pela tão clamada imparcialidade, isenção, mas que, no fundo, se não defende algum tipo de interesse político ou financeiro, revela mesmo é um total despreparo intelectual na abordagem do cinema.

A escrita de Jairo Ferreira é como o cinema que ele tanto cultivou, uma atividade em franca extinção. O que não faltava ao autor, e que falta atualmente, era transparência e uma sagacidade comparável somente aos grandes mentores do crítico.

Herdou de Oswald de Andrade a rebeldia e gosto pela antropofagia, de Raul Seixas o fascínio pela magia das coisas do mundo, de Ezra Pound a sistematização, de Fuller a fúria, e por aí vai.



Jairo era capaz, sim, de fazer defesas viscerais dos cinemas de alguns amigos - amigos geniais como Sganzerla, por exemplo -, mas também de descer o sarrafo nos diluidores - um de seus inúmeros pseudônimos, quando escrevia para publicações marginais, era nada menos que Décio Sarrafo.

Ater-se a leitura do livro “Cinema de Invenção” é isso, abrir as portas para o mundo do cinema sob influência dos poemas de Oswald de Andrade, sistemas de análise de Ezra Pound, músicas de Noel Rosa ou Raul Seixas, enfim, abrir-se para que o cinema possa se manifestar e se disseminar por todos os poros possíveis.

“Cinema de Invenção” é dos livros mais importantes sobre o tema publicado no Brasil porque para um cinema de invenção foi necessária uma crítica à altura, e inventividade não faltou à escrita de Jairo Ferreira.

quinta-feira, 1 de maio de 2008

SCORSESE: DIAS RUINS

PUBLICADO NA FOLHA DA REGIÃO NO DIA 23 DE SETEMBRO DE 2007

Martin Scorsese sempre expôs sua condição de cinéfilo na indústria de Hollywood, tendo feito até, por muitas vezes, o chatíssimo papel de "porta-voz" da cinefilia norte-americana.

Scorsese já depôs sobre cineastas em entrevistas para lançamentos de edições especiais em DVDs de vários filmes do passado e também realizou documentários sobre o cinema norte-americano e o italiano.

Porém, com o passar dos anos, sua paixão exacerbada pelo cinema serviu de colete à prova de balas para que seu trabalho ficasse intocável numa redoma de vidro. Criticar um filme de Scorsese equivale a um crime para qualquer cinéfilo.

A verdade é que os artistas são humanos, ou seja, eles erram e passam por dias ruins. Com Martin Scorsese não é diferente. Se muitos dos seus amigos de geração erraram e tiveram seus equívocos reconhecidos, por que não tirar o colete do realizador de "Taxi Driver", de 1976, e "Touro Indomável", de 1980?


Se Francis Ford Coppola fez "Jack" (aquele mesmo, com Robbin Williams) e Brian De Palma realizou fiascos iguais ao "Quem tudo quer, tudo perde", qual o problema em dizer que "Cabo do Medo", 1991, é um filme ruim de gênero enrustido de "grande arte" ou, ainda, que "O Aviador", de 2004, é um verdadeiro elefante branco?

Martin Scorsese vive dias ruins e seu último trabalho, "Os Infiltrados", é um bom exemplo disso.

"Os Infiltrados" é como uma caricatura de outros trabalhos do Scorsese. Começa como "Cabo do Medo", um filme de gênero tentando elevar sua "qualidade": para mostrar os conflitos étnicos que assolam Boston - mafiosos irlandeses, traficantes italianos e negros -, o cineasta não encena qualquer rotina de tais grupos, ele não constrói um mundo no qual a trama, de policiais infiltrados na máfia e mafiosos infiltrados na polícia, possa ganhar uma projeção dramática.


Ao contrário de qualquer solução eficaz, o cineasta simplesmente falsifica uma cena documental no qual gangues se digladiam e testemunhas depõem defronte a câmera treme-treme da suposta reportagem. Para ficar mais "cool" ou se auto-reverenciar, Scorsese dita o ritmo dessa baboseira com uma música do Rolling Stones (banda utilizada em outros filmes do cineasta, como no "Caminhos Perigosos", de 1973).

A música também introduz o personagem de Jack Nicholson, Frank Costello, o chefão da máfia em Boston que conecta todas as tramas, envolvendo as investigações policiais do agente infiltrado feito por Leonard Di Caprio e os serviços de contra-espionagem realizados pelo mafioso infiltrado na polícia, e afilhado de Frank, interpretado por Matt Damon.

Frank não é um mafioso comum. É um total psicótico, que não para de pensar em sexo até mesmo quando está a matar um inimigo. Ele trata seus crimes como se estivesse realizando obras de arte. A presença sempre desestabilizadora dele não funciona como a atuação do Joe Pesci em "Os Bons Companheiros", de 1990, que fazia do humor um barril de pólvoras nas suas cenas.


A presença de Frank Costello é lapidada por Jack Nicholson não como se estivesse em um "típico" filme de máfia, mas como se reprisasse seu papel de Coringa no "Batman". Desse modo, Nicholson é o único em cena a ter plena consciência do tom caricatural do filme, de obra que aspira a uma piada de mau gosto.

Enquanto o vilão trabalha na contramão, o filme caminha para um beco sem-saída. A estrutura fragmentada do filme - que sobrepõe cenas de violência, do trabalho dos infiltrados, às suas crises pessoais - é tirada de "Touro Indomável", que tinha as cenas de luta do boxeador sobrepostas às brigas do personagem com sua família.


A montagem agressiva, em blocos, do filme de 1980, que servia à dramaturgia para mostrar como as lutas do boxeador funcionavam como extensão de suas crises e brigas domésticas, no filme “Os Infiltrados” em nenhum momento tal recurso parece se justificar.

A preocupação do Scorsese em interpretar o papel de porta-voz da história do cinema levou-o a se preocupar mais em preencher os enquadramentos do seu filme com os Xs, homenageando o filme “Scarface”, de Howard Hawks, que era cheio deles, do que em absorver o complexo mundo de seus personagens para a superfície da tela.

As bruscas mudanças temporais colaboram mesmo para distanciar o espectador dos dilemas dos personagens, pois nunca os gestos deles justificam a afeição que nutrem por seus chefes ou exprimem a dureza de se manter escondido e levar uma vida dupla.


Há uma cena que parece, assim como Jack Nicholson, ter consciência da insuficiência do filme: num cerco armado por policiais para pegar o mafioso com as mãos na massa, algum oficial se esquece de botar uma câmera de vigilância no fundo do galpão onde se desenrola a ação. Ele esquece de colocar a câmera exatamente no espaço por onde se concretizará o ato.

O filme é essa cena, um conjunto de eventos filmados pelo ângulo errado.