domingo, 27 de abril de 2008

O CINEMA DE VALERIO ZURLINI

PUBLICADO NA FOLHA DA REGIÃO NO DIA 16 DE SETEMBRO DE 2007


Valerio Zurlini surgiu para o cinema italiano no mesmo período que vários medalhões do cinema moderno. Iniciou carreira fazendo pequenos documentários, como Roberto Rossellini, mas diferente do realizador de "Viagem à Itália" ou do companheiro geracional Michelangelo Antonioni, com quem costuma ser comparado devido ao interesse de ambos por dilemas humanos, Zurlini nunca fez filmes que pretendessem revolucionar a linguagem do cinema.

Como muitos diretores que preferiram depurar um estilo a inventar a roda, Valerio Zurlini pagou um preço alto por isso: quando não diminuído perante tantos italianos geniais, seu trabalho foi ofuscado e até esquecido. Mas, como diria o cineasta norte-americano Peter Bogdanovich, não há nada melhor para se provar as qualidades de um filme do que a passagem do tempo.

O decorrer dos anos fez bem aos filmes de Zurlini, obra que agora pode ser redescoberta com o lançamento de três filmes do cineasta em DVD.



"Verão Violento", de 1959, "A Moça com a Valise", de 1961, e "A Primeira Noite de Tranqüilidade", de 1972, são filmes que têm como ponto de partida histórias sobre amor impossível entre adolescentes (o paquerador Jean-Louis Trintignant, o tímido Jacques Perrin e a sedutora estudante Sonia Petrova, respectivamente) e adultos (a viúva Eleonora Rossi Drago, a cantora de cabaré Claudia Cardinale e o professor de literatura Alain Delon).

Tramas tão arriscadas quanto batidas, atualmente sucatadas em núcleos de novelas. Mas Zurlini nunca optou pela polêmica do tema ou investiu em "tabus", as histórias de amor sobre casais formados por jovens e senhoras, ou senhores, simplesmente serviam de princípio para o cineasta extrair uma grandeza, digna das tragédias gregas, de um gênero subestimado como o melodrama, caracterizado por dramas ordinários e novelescos.

Cenas como a de "Verão Violento" em que Eleonora Rossi Drago vai ao circo acompanhando o grupo dos jovens amigos de Trintignant, por quem está interessada, ou a que Jacques Perrin toma seu primeiro porre alcoólico e amoroso ao observar Cardinale dançar com um maduro homem de negócios, em “A Moça com a Valise”, são ocasiões aparentemente embaraçosas das quais Zurlini retira uma nobreza, honestidade no tratado.


Momentos que também servem para reforçar as diferenças entre Antonioni e ele. Enquanto o primeiro externava os conflitos existenciais dos seus personagens através de cada paisagem habitada por eles, fazendo-as expressar os sentimentos humanos, Zurlini preferia o movimento contrário: em seus filmes, qualquer pressão externa (climática, social, moral) seria capaz de afetar seus homens ao ponto de sufocá-los, destruí-los.

A pressão está nas convenções sociais e no calor do verão e da Segunda Guerra Mundial que assombram os jovens alheios que vivem na praia em "Verão Violento", mas também está presente no discurso moralista do padre que convence a pobre e mais velha Cardinale a desistir do jovem rico Perrin no “A Moça com a Valise”. A coerção ganha forma no intenso inverno de Rimini, além de fundir-se com todas as outras formas repressivas citadas acima, no "A Primeira Noite de Tranqüilidade".

Mas a pressão certamente não está representada somente nas tramas, o próprio rigor nos enquadramentos e encenação se encarrega de tornar cada centímetro de distância entre os amantes em uma lonjura sem fim. Se a mulher está no primeiro plano, certamente o homem completará o quadro bem ao fundo do segundo.


O cineasta seguia a risca o provérbio que diz "a felicidade não tem história" e fazia dessa melancolia uma obsessão estética. Como profundo conhecedor das artes, Zurlini acreditava no provérbio e também na capacidade das artes em historiografar tal tristeza. Por esses dois atributos, a languidez não era só um tema.

Ela era explanada dignamente na imagem: a câmera mantida, por cerca de um minuto, no rosto de Jacques Perrin, enquanto ele observa Cardinale dançar com outro homem, ou a troca de olhares e luzes, a dor e o êxtase, entre Sonia Petrova e Delon na cena da boate em "A Primeira Noite de Tranqüilidade", quase uma repetição em cores do filme de 61.

E a tristeza tinha também reconhecida pelos personagens sua representatividade nas artes e, assim, os ajudavam a viver: Jacques Perrin colocando a música Aida, de Verdi, para tocar enquanto a Aida de Cardinale desce, ao encontro do jovem, as escadarias da mansão; Alain Delon emprestando o livro "Vanina Vanini", de Stendhal, para a Vanina de Sonia Petrova.


Zurlini caminhou em linha reta. De “Verão Violento”, seu segundo filme, a “A Primeira Noite de Tranqüilidade”, o penúltimo, - filmes separados por mais de uma década - histórias, personagens e cenas parecem reprisadas, retornam como assombrações em meio a citações feitas por movimentos de câmera ou através de diálogos.

No final das contas, seu penúltimo trabalho tornou-se um belo exemplo daquela obra referencial que Zurlini tanto procurou para fazer existir seus personagens.

Alain Delon carrega em seu rosto o sofrimento e a plena consciência da impossibilidade de ser feliz, noção que não acompanhou o jovem Trintignant nem o tímido Perrin nos filmes anteriores, seu professor é a versão envelhecida, o reverso, daqueles jovens que um dia amaram mulheres mais velhas.


Mesmo sabendo que não teria sucesso, Delon arriscou. Mesmo sabendo que o colorido da película não seria muito diferente dos contrastes e desolação do preto e branco dos seus primeiros filmes, Valerio Zurlini insistiu em mais uma história de amor impossível, persistiu porque, no fundo, a melancolia era a razão de existir o seu cinema.

quinta-feira, 24 de abril de 2008

"ÚLTIMOS DIAS": CLÁSSICO E MODERNO

PUBLICADO NA FOLHA DA REGIÃO NO DIA 09 DE SETEMBRO DE 2007


“Últimos Dias” não é um filme preocupado em desvendar a vida ou firmar hipóteses sobre a morte de Kurt Cobain, líder da banda Nirvana. Contrariando um público ávido por uma obra dramatizada ao estilo do programa “Linha Direta”, o cineasta Gus Van Sant buscou na reclusão do vocalista o necessário para extrair um cinema embrionário.

Gus Van Sant se aproxima mesmo de Kurt Cobain, especificamente do último álbum da banda, o “In Utero”, quando se apega às características rudimentares do cinema para descrever os passos do jovem músico transviado.

Se no álbum Cobain canta e clama por seu cordão umbilical, ou seja, deseja retornar a um estágio inicial de pureza que não mais seria recuperado, “Últimos Dias” se constrói como se Gus Van Sant estivesse recolhendo os cacos deixados pelo filme “Juventude Transviada”, de 1955.


Nicholas Ray fez do filme que imortalizou James Dean uma das obras expoentes do que se convencionou chamar cinema moderno. Como um filho rebelde, o cinema moderno desafiava o pai, o cinema anterior, renegando seu parentesco em nome da renovação.

Em “Juventude Transviada”, os sentimentos extremados resultavam em numa estética de cores berrantes e encenações virtuosas, onde os gritos de desespero dos personagens eram acompanhados pelo grito desesperado da câmera. Já no filme “Últimos Dias”, o jovem não mais possui um referencial paterno e nem força ou razões para gritar.

O pai se tornou um vendedor de páginas amarelas ou um detetive misterioso e a rebeldia se transformou em melancolia, por essas e outras que Gus Van Sant se propôs a fazer o acerto de contas entre pai e filho, entre o cinema tido como clássico e o moderno.


Em “Últimos Dias” há a mansão onde os jovens se isolam do mundo, vivem à margem das leis que regem o mundo dos homens, dos pais. É uma mansão não muito diferente daquele no qual James Dean se refugiava com seus amigos para se tornar seu próprio pai.

Mas o que envolve esse lugar é a natureza, um universo misterioso aos olhos juvenis e mundo que possibilita à Blake (o personagem inspirado em Kurt Cobain) redescobrir certa beleza das coisas que estavam escondidas por trás de um passado de muitas transgressões.

Revelação similar que já fora sentida no filme de Nicholas Ray, na cena em que os jovens visitam um planetário, porém sem ter havido a efetivação de qualquer conciliação.


Comprometidos com o mundo moderno, dos carros com os quais se disputavam rachas, parecia irreconciliável o retorno dos jovens ao estágio embrionário, à natureza, aos pais. O que havia nas cenas do planetário em “Juventude Transviada” era o assombro, um deslumbre somente.

Deslumbre que no cinema contemporâneo encontrou no “O Selvagem da Motocicleta”, dirigido por Francis Ford Coppola em 1983, o primeiro sinal de reconciliação entre uma juventude rebelde não mais livre - mas sim aprisionada em sua melancolia - e a natureza, figura referencial de uma paternal, benévola, liberdade.

Enquanto no filme “O Selvagem da Motocicleta” não só o pai era um bêbado - figura não coincidentemente interpretada por Dennis Hopper, um dos jovens rebeldes do filme de 55 - como a conciliação com a natureza parecia fadada ao fracasso - ao libertar peixes de um aquário, o motoqueiro selvagem interpretado por Mickey Rourke é morto.


No início de “Últimos Dias” o pacto parece também irremediável, quer seja pela câmera que adentra no bosque com o jovem Blake sem conseguir não enquadrar ou capturar o som de um trem que passa por trás das árvores ou ainda pela cena no qual a “expedição” de Blake é enquadrada por uma pequena janela dentro de um quarto que exibe na TV um videoclipe modernoso de uma banda qualquer.

Gus Van Sant intensifica sua busca por um cinema revigorado capaz de extrair, do que o cinema tem de mais rudimentar, um olhar livre do espectador. Por isso os planos vão se alongando, os cortes tornam-se tão sutis e escassos quanto os movimentos da câmera e a dramaturgia simplesmente se esfarela.

A tela que em “Juventude Transviada” era panorâmica retoma as proporções menos retangulares do cinema pré-anos 50, discursos e diálogos em demasia são limados e a extensão da encenação praticada por Ray-Dean na cena da cadeia invade todo o filme de Van Sant e tem seu pathos (excesso, paixão, sofrimento) esvaziado. A explosão se dissipa.


Poucas vezes no cinema o simples ato de se colocar leite no cereal foi tão barulhento, dramático e estranho quanto em “Últimos Dias”, poucas vezes um diálogo foi tão confuso quanto aquele no qual Blake ouve a reclamação de um amigo sobre a falta de um ar-condicionado na mansão, poucas vezes uma paisagem natural foi tão enervante.

Esses “signos do caos” são estranhamentos que levam o espectador a sintonizar-se com o descompasso do personagem perante o mundo e que torna muito mais veemente a experiência de se acompanhar a transformação de Blake em parte integrante do mundo que habita.

O momento em que o pacto finalmente se concretiza, o momento no qual a natureza e Blake entram em sintonia, é o ápice do filme. A câmera muda de posição: enquanto Blake está dentro da casa, se preparando para tocar uma música, a câmera o filma do jardim, através de uma janela.


Ele tira o som de sua guitarra, as árvores balançam suavemente. A câmera se distancia da janela onde se vê Blake no decorrer da música, enquanto ela se intensifica. Blake, em estado de fúria, troca de instrumentos e o vento que move as árvores entra no compasso de sua fúria. Ao término, uma conclusão: o personagem ditou o ritmo da natureza, a fez mover-se ao som de sua música.

Se em “Juventude Transviada” levar um carro para o precipício denotava a morte certa, se em “O Selvagem da Motocicleta” a alma de Rusty James, irmão do motoqueiro, voava para longe e, em seguida, retornava ao corpo como se tudo não passasse de um delírio, em “Últimos Dias” os conflitos se apaziguam.

Como o título explicita, o filme é sobre um rapaz que vive seus últimos momentos antes de cometer suicídio. A morte aparece ao final, como no filme de Francis Ford Coppola, mas, em “Últimos Dias”, ela é só mais um passo dado rumo à luz, que impulsiona a alma para fora do corpo e a restitui para a natureza.

domingo, 20 de abril de 2008

VÊNUS EXTRAI JOVIALIDADE DA VELHICE

PUBLICADO NA FOLHA DA REGIÃO NO DIA 02 DE SETEMBRO DE 2007


Na mitologia Vênus é a deusa responsável por contrabandear o ardor do desejo para a vida dos homens. Na pintura foi a inspiração para artistas como Velásquez. No filme dirigido por Roger Michell é a forma como Maurice (Peter O’Toole), renomado ator e conquistador de outrora, apelida Jessie (Jodie Whittaker), bela jovem que trabalha de enfermeira para seu amigo Ian (Leslie Phillips), um velho tão acabado quanto ele.

Se aparentemente o enredo sugere uma obra de momentos constrangedores ou por demais açucarados, o cineasta Roger Michell (conhecido por ter feito "Um Lugar Chamado Nothing Hill") driblou qualquer expectativa negativa e fez uma tragicomédia tão sóbria, e ao mesmo tempo surpreendente, quanto os idosos do seu filme.


As primeiras informações que o filme passa ao espectador não são diferentes de qualquer outra comédia sobre velhice: dois velhinhos bacanas, Ian e Maurice, estão sentados numa mesa de uma cafeteria e brincam sobre morte, remédios, aposentaria e sexo. Aparentemente um filme que utiliza o mais do mesmo. As impressões mudam quando Ian anuncia a jovem que entrará em sua vida nas cenas seguintes.

Com a entrada da jovem, assim como a deusa que faz brotar o desejo e a musa que inspira os artistas, os idosos do filme ganham vida. Maurice especialmente, que tenta de várias maneiras se fazer notar perante a garota que não dá a mínima bola para ele.


Maurice certamente não procura por sexo (a operação de próstata que ele faz no decorrer do filme explicita isso), mas em nenhum momento se sabe exatamente o que ele quer da menina. Do mistério, o filme cresce.

Jessie (ou Vênus) leva Maurice para seu habitat, uma boate. Maurice leva sua Vênus para o seu - para ver uma peça de teatro e ao museu onde está localizada a pintura de Velásquez. Jessie brinca com Maurice ao deixá-lo cheirar sua pele e o joga para longe quando ele ultrapassa as barreiras e a beija. Maurice brinca com sua Vênus ao levá-la para provar roupas apenas para vê-la se vestir, sem levar nenhum tostão para comprar qualquer coisa para a jovem.


A beleza do filme irrompe desses momentos, dessas brincadeiras, em que o personagem de O'Toole não é tratado com complacência, feito de coitado ou qualquer coisa do tipo, e nem a personagem de Jodie Whittaker é tida como aproveitadora, mesmo tirando vantagens do velhote em bons momentos da película.

Ao passo em que Jessie (Vênus) vai fugindo da vida de Maurice e o personagem perde seu poder de conquista (a operação da próstata e sua debilitação), o filme também deixa escapar sua vitalidade.


A atuação de Peter O'Toole, porém, se mantém intacta e jovial, rendendo próximo ao final um belo momento no qual Maurice faz as pazes com sua esposa (Vanessa Redgrave).

Maurice talvez tenha encontrado em Vênus forças para se conciliar com seu passado e com a esposa. Por isso talvez o personagem interessou-se pela jovem, mas são sugestões que em nenhum momento o filme responde, força a barra com lições de moral ou mensagens edificantes. Michell é inteligente o suficiente para mantê-la apenas nas entrelinhas.


“Vênus”, que transita por clichês para deles se extrair uma jovialidade, é no fundo um filme sobre tais conflitos e transitoriedades: do embate entre juventude e velhice, entre tombos e elevações, se cicatrizam antigas feridas.

quarta-feira, 16 de abril de 2008

LOST IN TRANSLATION

PUBLICADO NA FOLHA DA REGIÃO NO DIA 26 DE AGOSTO DE 2007


Quando realizou seu primeiro longa-metragem, "As Virgens Suicidas", de 1999, Sofia Coppola não só conseguiu ofuscar sua contestada atuação no terceiro episódio de "O Poderoso Chefão", dirigido pelo seu pai, Francis Ford Coppola, como passou a ser vista como uma promissora realizadora. Filha de peixe, disseram muitos.

De promessa à consagração meteórica com o seu segundo trabalho, "Encontros e Desencontros", de 2003, faltava à filha do "homem" apenas sentir o gosto do fracasso que tanto acompanhou a carreira de seu pai (o fracasso total, de crítica e público, do musical "O Fundo do Coração" é um bom exemplo). Fracasso que chegou para a jovem, em 2006, com o lançamento do seu último longa-metragem, "Maria Antonieta".


No Brasil, o filme não só demorou a ser lançado no cinema como teve uma repercussão gélida. O que se deve deixar claro é que o fracasso de "Maria Antonieta" não foi um fracasso artístico, de um projeto que pretendia certas coisas que não foram executadas, nada disso.

A ruína do filme foi de uma obra que não conseguiu ser compreendida. Como as jovens pertencentes ao universo da cineasta, o filme ficou "lost in translation" (o título original do seu segundo trabalho).


Àqueles que esperarem do filme um drama histórico ou qualquer tratamento pudico na reconstituição biográfica da rainha francesa que foi presa e decapitada na era da Revolução, podem tirar o cavalo da chuva porque Sofia Coppola nem se propõe a fazer uma releitura histórica ignóbil, como as do italiano Franco Zeffirelli, e muito menos clama pelo cinema aristocrático e suntuoso do mestre Luchino Visconti.

O que Sofia Coppola persegue em "Maria Antonieta" não é muito diferente do que vinha perseguindo desde seu curta-metragem "Lick, the Star", de 1998, que é manter certa cumplicidade no retrato de jovens garotas deslocadas dos ambientes em que estão inseridas e que procuram transcender seus mundos, as etiquetas, as normas que os regem.


A Maria Antonieta de Kirsten Dunst não é diferente de uma das irmãs virgens que a atriz interpretou no primeiro filme de Sofia e nem está longe da melancólica Scarlett Johansson de "Encontros e Desencontros". A clausura da corte de Versalles não é menos sufocante do que o hotel japonês de "Encontros e Desencontros" e a figura castradora da Condessa de Noailles (Judy Davis), que ensina as regras do jogo à jovem rainha, é a sombra da mãe (Kathleen Turner) no "As Virgens Suicidas".

O filme "Maria Antonieta" é a prova do que o escritor Charles Baudelaire, no livro “Sobre a Modernidade”, idealizou como sendo o modelo de uma obra de arte moderna: um filme que utiliza as clássicas vestimentas, velhos costumes e cenários para falar do que está próximo de nós, da contemporaneidade.


Não à toa o rei Luís XVI feito por Jason Schwartzman é pintado como um nerd - o fascínio dele por cadeados pode ser lido, na verdade, como um comentário sobre os jovens viciados em computadores ou jogos RPG -, ou um dos diálogos das moças da corte, sobre um suposto depoimento de Maria Antonieta ("Se os franceses não tem pão para comer, que comam bolo"), é tratado como se fosse um boato espalhados em tablóides, etc.

Como as personagens que cria, Sofia Coppola não se deixa vencer por rígidas regras de reconstituição. Se há uma necessidade de acompanhar as andanças da adolescente Maria Antonieta (em nenhum momento do filme ela é filmada como “rainha”) com uma música eletrônica da dupla francesa Air, ela não hesita e utiliza-a.


Em poucas vezes na história do cinema um artista teve a ousadia de filmar um baile de máscaras do século XVIII como se estivesse a registrar um baile de formatura. Sofia Coppola, como os grandes artistas, foi capaz não só dessa proeza como a de revigorar e aproximar o olhar do espectador para um período tão distante.

Maria Antonieta contempla a iluminação do raiar do sol ao andar de carruagens, sua cabeça está encostada na janela e o reflexo da paisagem que ela olha reflete no vidro. O ritmo e a forma como ela é filmada remete diretamente a qualquer uma das cenas de “Encontros e Desencontros”.


É certo que o espectador não está em uma paisagem do Japão, como no filme anterior, talvez não esteja em Versalles ou sequer na França que se acostumou a ver nos cinemas, mas o espectador certamente embarca numa estranha e sedutora paisagem, no universo de Sofia Coppola.

domingo, 13 de abril de 2008

ANTONIONI ALCANÇOU A ALMA HUMANA

PUBLICADO NA FOLHA DA REGIÃO NO DIA 19 DE AGOSTO DE 2007


Não bastava Ingmar Bergman, o cinema perdeu na mesma semana o diretor italiano Michelangelo Antonioni.

Antonioni, assim como o cineasta sueco, foi um dos precursores do cinema moderno. Foi também cultuado por sua "profundidade" e por ser o poeta da incomunicabilidade, termo a qual foi submetido por ter realizado uma trilogia sobre o tema, composta pelos filmes "A Aventura", "O Eclipse" e "A Noite".

Com sua morte, o cinema não perdeu o "poeta da incomunicabilidade", perdeu sim um dos poucos cineastas que foi capaz de transpor, com uma câmera, a alma dos personagens para a superfície da tela do cinema.


No filme "O Grito", de 1957, por exemplo, não há brados desesperados do personagem, um trabalhador à deriva no mundo com sua pequena filha após ser deixado pela mulher. Quem grita por ele são as paisagens invernais pelas quais caminha – a fábrica em que trabalha, o mastodonte industrial, e também as árvores mortas e ruas desertas.


Dos primeiros filmes, "O Grito", é a obra que evidencia as características que permeariam seus filmes seqüentes. Nele está presente a transformação de cenários modernos em espaços tão vazios e enevoados quanto seus personagens - característica que teve com “O Deserto Vermelho”, de 1964, o ponto de ruptura, no qual houve a substituição do preto e branco pela experimentação das cores - e o interesse por personagens que perambulam pelo mundo em busca de alguma verdade e/ou identidade - o filme "Blow-up - Depois Daquele Beijo" serve de exemplo.


Se "O Grito" é a obra que apresenta todas as obsessões caras ao cinema de Antonioni e "O Deserto Vermelho" representa o ponto de ruptura, "Profissão: Repórter", de 1975, pode ser considerado o seu "filme-testamento".

Se as paisagens desse filme não mais têm força para gritar, o registro em cores do deserto africano hesita entre a agonia que acompanhou o primeiro momento da carreira do cineasta e o transe em que entrou quando deu adeus à Itália e passou a vagar pelo mundo. Tudo isso enquanto o personagem de Jack Nicholson, um cineasta-repórter, se mete em uma troca de identidade com um falecido traficante de arma.


Como o cineasta-repórter do filme, Antonioni deixou suas origens para investigar outras culturas, excursão que lhe rendeu filmes na Inglaterra (“Blow-Up”), EUA (“Zabriskie Point”) e China (“Chung Kuo - China”). E assim como o personagem encontra na troca de identidade a chance de se reencontrar no mundo, Antonioni viu na produção internacional de “Profissão: Repórter” (produzido na Itália, França e Espanha e falado em pelo menos quatro línguas, entre elas o espanhol, inglês, alemão e francês) a oportunidade de ir um pouco além, bifurcar suas experiências no cinema italiano com a que teve no cinema internacional.


Trafegar da cidade para o deserto, do cenário impessoal ao natural, do corpo para a alma, são todos os movimentos que fizeram o cinema de Michelangelo Antonioni e que tem em “Profissão: Repórter” o movimento derradeiro na cena da morte de Jack Nicholson:


Ao se ouvir o disparo de um tiro, a câmera se desloca do seu ponto originário, junto ao corpo estendido do ator na cama, e passa por entre as grades do quarto em que estava. Já na rua desértica, próxima das pessoas que passam por ali, a câmera faz o movimento contrário e se aproxima do quarto enquanto as pessoas se dissipam. Aproxima-se para fitar o corpo sem vida do repórter que dá o título do filme.


Num único plano, de seis minutos aproximadamente, sem sequer um corte, o cineasta não só transpôs a alma humana para a superfície da tela como fez da câmera, do cinematógrafo, a própria alma de Jack Nicholson. Belo final para um filme, belo canto derradeiro para uma carreira que insistiu em se prolongar um pouco mais, rendendo outras obras não tão expressivas quanto essa.


Antonioni faleceu, mas ali, no plano final de “Profissão: Repórter”, ele já havia se tornado imortal.

quarta-feira, 9 de abril de 2008

RIO BRAVO: A REABILITAÇÃO DO CINEMA

PUBLICADO NA FOLHA DA REGIÃO NO DIA 12 DE AGOSTO DE 2007


É difícil abordar os filmes de Howard Hawks, mas eles preservam mistério não porque as narrativas são truncadas ou por haver rebuscamento em seu estilo, pelo contrário, a simplicidade e a eficácia com que narra suas histórias resultam em dificuldades com as quais os críticos deparam ao se tentar abstrair idéias de uma arte tão concreta.

Um caubói sujo e cansado entra num saloon. Transita da noite externa para as laterais iluminadas do recinto como se ainda permanece na escuridão. As pessoas notam sua presença quando um homem no balcão ri do caubói e lhe joga uma moeda em um gesto de desprezo. O caubói, identificável como um bêbado, humilhantemente se agacha para pegar sua esmola. A câmera também agacha e com ele se posiciona para cima a olhar a mítica figura de John Wayne, que observa a degradação do indivíduo.


Nenhum diálogo, nenhum malabarismo da câmera ou mímica dos atores. Basta Dean Martin, que interpreta o bêbado, levar sua mão ao rosto para transmitir sua insegurança, basta o lançar da moeda do homem mal-encarado para que saibamos ser Dean Martin o motivo de chacota da vila e basta a câmera se abaixar e olhar John Wayne para que o espectador tenha a chance de se reerguer com Dean Martin.

Não há barreiras entre o espectador e a narrativa do faroeste “Onde Começa o Inferno”, a quintessência do cinema de Hawks que acaba de receber uma edição dupla em DVD. O que existe é a transparência da direção de Howard Hawks.


O filme é sobre o processo que levará o xerife Dean Martin à reabilitação, sobre o movimento que ele fará para deixar o chão e ficar à altura de todos os outros homens. Howard Hawks parecia entender bem a premissa porque, assim como Dean Martin, vinha de um retiro de quatro anos do cinema após o fracasso de sua obra anterior, “Terra dos Faraós”.

Soma-se ao tema do filme a convicção de Hawks no profissionalismo, seu apego aos círculos de amizades masculinas e uma visão ao mesmo tempo sedutora e moderna das mulheres. É o terreno hawksiano por excelência, que faz de “Onde Começa o Inferno” a obra em que todas suas convicções passadas são externadas sem subterfúgios e o ponto no qual seu cinema futuro se apoiaria.


A rarefação de cenários e a utilização insistente da cadeia local como palco para a ação levam à depuração do estilo hawksiano. É como se ali Hawks colocasse seu cinema em um microscópio, tornando possível uma observação mais cuidadosa dos procedimentos tomados por ele.

A cena da reabilitação de Dean Martin, por exemplo, é a mais fina expressão do que é o cinema: como no início, o xerife entra no bar. Não mais para beber, mas para capturar o assassino de um amigo. Os caubóis riem da cara de Martin e ao invés de lhe passar informações sobre o pistoleiro, atiram moedas para o xerife tomar um trago.


Enquanto desenrola a intervenção frustrada de Martin, o espectador é informado pela câmera de Hawks que o pistoleiro procurado se esconde no sótão do bar. E ele sua como um porco.

O bandido está no alto, Dean Martin está abaixo. Acima um bandido prestigiado, abaixo o xerife fracassado. A moral da história é dada através da disposição dos atores em cena e da posição da câmera do cineasta.

Dean Martin parece desistir de procurar o pistoleiro e pede um copo de cerveja. Sob os olhares de John Wayne, o responsável por levantá-lo no início, ele hesita em pegar a caneca. O tempo de espera é o suficiente para que gotas de suor caiam no copo e Dean Martin desista de beber para se posicionar e atirar no assassino.


O pistoleiro cai morto. Ele não está mais numa posição moral/cinematográfica acima do xerife bêbado. Ao redor do bar, todos os homens que riam de Martin se calam e o xerife não mais empunha sua arma com tremedeiras de ressaca. Ele foi reabilitado, pela câmera de Hawks.

O cinema de Howard Hawks não é simplesmente a beleza de um cinema passado, mas de um cinema insuperável, que seduz e assombra muitos cineastas. É o pilar no qual se construiu, por exemplo, toda a carreira de John Carpenter. Não é pouca coisa.

“Onde Começa o Inferno” deveria ser obra de cabeceira para os neófitos cinéfilos e realizadores. Quem sabe assim o cinema não fosse reabilitado, como Dean Martin no filme? Enquanto isso, atura-se filmes “chumbados” como “Transformers”.