quarta-feira, 30 de julho de 2008

CINEFILIA EM TEMPO DE EMULE

PUBLICADO NA FOLHA DA REGIÃO NO DIA 20 DE JANEIRO DE 2008


Costuma-se atribuir culpa à pirataria e internet pela decadência de videolocadoras ou do mercado de distribuição de filmes. Estão entre as figuras “demoníacas” os programas de compartilhamento de arquivo, como o Emule.

São mal-entendidos disseminados, por exemplo, através de vídeos informativos inclusos nos dvds das grandes distribuidoras. Um exemplo é aquele no qual um pai todo orgulhoso leva pra casa uma cópia pirata e acaba tomando uma lição de moral do filho.

Fato é que o Emule sinaliza muito mais uma ruptura na história da cinefilia do que a causa para qualquer sinal de decadentismo das videolocadoras.

O Emule é um personagem importante na história contemporânea da cinefilia, tão importante para toda uma geração de cinéfilos originários de “guetos” da internet quanto as salas de bate-papo, blogs, listas de discussão segmentada, etc.

Geração que pouco se lembra das empoeiradas e grandiosas vídeo locadoras, aquelas parecidas com pequenos e mal-tratados museus, e que viu esses mesmos pequenos e sujos locais serem substituídos, gradativamente, pelas videolocadoras com aparência de sexy-shop e/ou de farmácia.

Com o desaparecimento dos museus pulguentos e com a chegada das lojas que queimariam toda a filmografia do Alfred Hitchcock se necessitassem de um espaço para colocar alguma bombonière, a procura homérica por filmes se tornou uma prática inútil, quixotesca.

Se cinefilia parecia uma atividade promissora quando uma cinemateca francesa, nos anos 60, era capaz de instruir uma geração de cinéfilos-críticos/cinéfilos-cineastas, como Jean-Luc Godard ou François Truffaut, o que dizer dos nossos dias, em que não mais existem verdadeiros cinemas, mas os multiplexes, que mais se parecem com aquele bordel no qual a Nastassja Kinski trabalha no filme "Paris, Texas", de Wim Wenders?

Se cinefilia parecia uma atividade sedutora quando foram fundados centenas de cineclubes nas capitais brasileiras que formaram gênios como Glauber Rocha ou Rogério Sganzerla, o que dizer quando a mera menção de que o cinema é também passível de discussão é capaz de causar urticárias nas pessoas?


Se foi transformado numa espécie de seita "demoníaca" com o advento do vídeo-cassete, no qual cada ida a uma vídeo-locadora, cada descoberta de um selo de distribuição misterioso, cada fita rara embolorada ou edição cortada e porca de um filme de Dario Argento rendiam momentos embriagantes de fúria, terror e revelação, o que restou?

Restou a Internet, que se não veio para salvar a "cinefilia", veio para misturar um pouco de cada característica dos vários momentos da história da cinefilia.

A troca de filmes por meio de um desses programas de compartilhamento foi uma atividade que acabou adotando o papel que antes pertenciam às cinematecas e cineclubes. Programas como o Emule possibilitam a descoberta de certos filmes que por outros meios raramente seriam conhecidos.

O Emule, sendo assim, tomou o espaço que as videolocadoras não mais poderiam ocupar e se tornou o banco de dados no qual as obras contidas naqueles velhos e pulguentos museus, ao redor do mundo, poderiam se refugiar.

Como achar, vivendo no Brasil, os filmes do maldito cineasta francês Jean Eustache? Como ter acesso aos filmes de um dos mais comentados cineasta contemporâneos, como o tailandês do impronunciável nome Apichatpong Weerasethakul? Os clássicos orientais dos japoneses Kenji Mizoguchi ou Yasujiro Ozu? O Emule também possibilita o conhecimento desses cineastas e milhares de outros cinemas de outras nacionalidades.


Se o Emule de certo modo substituiu as cinematecas e cineclubes na forma de se ter acesso a certos filmes, as listas de discussão, blogs de cinema e as revistas on-line serviram de espaços para se praticar a reflexão e o diálogo sobre cinema.

Espaço atualmente tão importante que até críticos e cinéfilos de outras gerações aderiram à “causa”, no intuito de atualizar o diálogo sobre a arte. O crítico Inácio Araújo, da Folha de S. Paulo, e o cineasta Carlos Reichenbach estão entre os que mantêm blogs de cinema.

Mas não só de maravilhas vive essa geração de cinéfilos órfãos (abandonados pelos pais, os cinemas e locadoras que não mais existem) e bastardos (nascidos dessa relação incestuosa entre o cinema e o vídeo, película e fita magnética, que gerou o digital e virtual, o disco e o Emule). A facilidade do acesso, aos filmes e às informações, seduz tanto quanto aniquila.

Se antes a esperança do lançamento de certas obras malditas parecia testar a fé dos cinéfilos e fazia com que se apreciasse cada obra como se fosse a primeira, a última ou a única, com o Emule o indivíduo pode ler o nome de Howard Hawks estampado em algum Wikipédia da vida, baixar as obras e, conseqüentemente descartá-las. De forma tão impessoal quanto o modo como se adquire as obras.

Se antes as poucas informações e reflexões disponíveis sobre cinema faziam com que o cinéfilo absorvesse-as efetivamente e, conseqüentemente, formulasse pensamentos mais sólidos sobre as obras assistidas, a facilidade no “consumo” de críticas leva o cinéfilo a ruídos na recepção das idéias, a diluições ou incompreensão de conceitos.

A cinefilia de hoje certamente não é como a de ontem, mas é na internet que a prática conseguiu se manter de pé, ao menos. A impessoalidade da mídia talvez impeça uma efervescência característica de outros tempos, mas essa “emulefilia” parece ser, dos desmembramentos da cinefilia, uma prática das mais estimulantes.

terça-feira, 22 de julho de 2008

CINEFILIA, ALGUMA ESPÉCIE DE DOENÇA?

PUBLICADO NA FOLHA DA REGIÃO NO DIA 13 DE JANEIRO DE 2008


O que é um cinéfilo? Esse nome estranho que sugere o diagnóstico de uma doença venérea (no final, sífilis e cinefilia parecem a mesma coisa) é como são conhecidos os apaixonados por cinema.

Porém, cinefilia não é uma doença em que os “contagiados” sofrem de sintomas padronizados. Assim como os aficionados por futebol, há cinéfilos de todos os tipos.

Há o cinéfilo Avallone, aquele que tem na ponta da língua todos os indicados e premiados ao Oscar e as fichas técnicas de todos os filmes que viu. Outro tipo é o cinéfilo Juca Kfouri, que possui um olhar caleidoscópico para o cinema, privilegiando a arte como manifestação estética, política e intelectual.

Tem também o Milton Neves, o cinéfilo fanfarrão que segue a moda vigente e sempre pende para o lado auto-promocional. Esse “cinéfilo-artista" é capaz, dentre outras coisas, de usar seu conhecimento do cinema francês para conquistar uma garota.


Como já escreveu Vinícius de Moraes, no texto intitulado "O Bom e o mau fã de cinema", nem toda cinefilia é boa. Há maniqueísmo nessa "doença" tanto quanto nos filmes de Charles Bronson.

Para Vinícius, o bom fã é aquele que senta nas fileiras da frente e se dedica, exclusivamente, a ver o filme. No seu texto, ele condena espectadores que comem nas salas, os que comentam as cenas ao passo que elas ocorrem na tela e os casais que usam a duração dos filmes para se fazer juras de amor.

Eu acredito ser o bom cinéfilo como o personagem do cientista no filme "O Homem dos Olhos de Raio-X", um sujeito que vê num colírio (o cinema) nada menos que uma janela privilegiada para o mundo.


Ou, como diria o crítico francês Michel Mourlet: “o cinema é o caminho do homem, de uma vida, rumo a Deus”. Idéia complementada por uma das frases proferidas por Ray Milland, o cientista do filme dirigido por Roger Corman: “Eu estou me aproximando dos deuses”.

Premissa não muito distante dessa é a do filme “Janela Indiscreta”, de Alfred Hitchcock, sobre um fotógrafo profissional que, ao ficar confinado em seu apartamento após quebrar a perna em um acidente de trabalho, se entretém espiando seus vizinhos do prédio à sua frente. Mas, como no cinema, nem toda espiada do fotógrafo é um momento de lazer e, por isso, ele acaba testemunhando um assassinato.


O que Hitchcock extrai dali, num dos seus mais célebres filmes, não é apenas o suspense que acabou caracterizando-o como mestre, mas também a problematização do papel do espectador no cinema. Problematização comprovada na inesquecível cena do encontro do fotógrafo, James Stewart, com o assassino.

O criminoso, antes de qualquer ação, se vira para o fotógrafo voyeur e diz: “O que você quer de mim?”. Stewart, que demora a reagir ao confronto, demonstra nada além de espanto com a abordagem questionadora, porque ele não estava ali para fazer justiça e testemunhar crime algum, ele só queria se divertir a olhar a rotina de seus vizinhos.


Hitchcock diz na cena que por mais que o espectador de cinema clame por sua inocência em qualquer atentado criminoso efetivado por um cineasta (Hitchcock, por exemplo, foi o maior encenador de crimes no cinema), na verdade ele exerce certa influência no “caso”, quer seja com o seu deleite, horror ou torpor.

A mesma pergunta que o assassino faz ao fotógrafo-voyeur deve ser feita aos amantes do cinema: o que um cinéfilo quer de um filme? Só não se deve perder de vista, ao emitir qualquer resposta, uma afirmação como a de Nietzsche: “quando se olha muito para um abismo, o abismo olha para você”.

A frase de Nietzsche, a cena do confronto no filme de Hitchcock, o delírio do cientista em “O Homem de Olhos de Raio-X” caminham pela velha história: as pessoas constantemente se olham e se julgam, mas se esquecem que são também constantemente julgadas pelo cinema.


Ser um bom cinéfilo definitivamente não é ver o maior número de filmes possíveis, não é ser uma espécie de maratonista ou um atleta cultural, cinéfilo é simplesmente um indivíduo capaz de ter seu olhar modificado pela influência de certas obras e reconhecer que ao se avaliar um filme ele também pode estar sendo julgado por ele. Bom cinéfilo, enfim, é aquele indivíduo que acredita ser o cinema não só outra atividade feita para entretenimento, mas sim uma arte indissociável da vida.

Talvez o cinema não seja a cura para nada, mas de certo é uma doença que deflagra sintomas e estabelece diagnósticos para as coisas da vida. E se o cinema é uma doença, então o cinéfilo talvez possa ser mesmo chamado de doente.

segunda-feira, 14 de julho de 2008

O QUE É O CINEMA?

PUBLICADO NA FOLHA DA REGIÃO NO DIA 06 DE JANEIRO DE 2008


Aí está uma pergunta que sempre nos pegamos a fazer. Muitos foram os pensadores que se propuseram a responder (de sociólogos a psicólogos, de filósofos aos próprios cineastas), mas nenhuma resposta parece satisfatória. Questão que nem esse artigo pretende esgotar, mas que serve para que notemos, afinal, o que nos fascina no cinema.

Já dizia o poeta não haver o amor, apenas suas provas. Acho que o mesmo vale pro cinema. Não existe uma entidade O CINEMA, apenas suas provas, ou seja, os filmes. Responder a questão “o que é o cinema?” é puxar na memória os filmes que amamos, pois não existe uma idéia de cinema, uma especificidade da arte. Há os filmes, essas provas de amor, há idéias de cinema e as singularidades de cada filme.

Partindo daí, creio ser a melhor definição para cinema, e também a mais nebulosa, uma de Jean-Luc Godard (sempre ele), talvez parafraseando seu mentor André Bazin: "o cinema não é uma arte, nem uma técnica, é um mistério".

Cinema é um mistério por permanecer como a arte do real. Não o real do tratamento de assuntos cotidianos, de ser a própria realidade a matéria prima da arte, mas pelo cinema ser o desenho deixado pela realidade na película.

Segundo o raciocínio de Bazin, amamos certos filmes por eles colocarem a câmera em lugares e em certas situações que não pudemos presenciar, mas que podemos testemunhar. O crítico francês gostava de fazer analogias do cinema com o véu de Verônica, "colocado no rosto do sofrimento humano", ou com as pegadas de Sexta-Feira que aterrorizava Robinson Crusoé, "não porque elas se pareçam com Sexta-Feira, mas porque foram realmente feitas por eles".

Por sua vez, o pensador Merleau-Ponty fez uso do cinema para firmar um ponto de vista sobre algumas teorias da psicologia: um indivíduo não revela sua exterioridade através de seu interior, mas sim este é revelado por seu exterior, pelos seus gestos e expressões.


Sendo o cinema, segundo Rogério Sganzerla, “ritmo e movimento, gesto e continuidade”, isso significa que a presença do ator e a delimitação de seu mundo pela câmera do diretor levam o espectador diretamente à verdade da alma humana, à verdade do cinema e da vida, concluindo ter o cinema não a função de preencher um buraco na parede, mas de ser uma janela sobre o mundo.

Como evidencia a denominação inglesa para a palavra filme (movie), o diferencial da arte sobre as outras é o movimento, essa ilusão ótica em 24 quadros estáticos por segundo que reproduz o movimento da vida. Verdade ou mentira? Pouco importa. Importa é a impressão do real, o véu de Verônica, as pegadas de Sexta-Feira.

Se essas são meras idéias, qual seria a prova, qual seria o filme a corresponder com elas? Eu diria que essa prova atende pelo título “Eu, um negro”, filme que o etnólogo francês Jean Rouch fez nos anos 50 ao levar sua câmera portátil para a Costa do Marfim no intuito de filmar a rotina de alguns jovens.


Rouch, porém, não pretendia fazer somente um documentário, pois a realidade em sua essência ia muito além do ato de capturar o cotidiano de meia dúzia de pessoas. Rouch era louco o suficiente para embarcar nas idéias de Bazin, torná-las materiais com seus filmes ao ponto de fazer dos jovens africanos atores, encorajando-os a representar suas próprias vidas e reinventá-las ao se tornarem Tarzan, Edward G. Robinson ou Dorothy Lamour.

Realizada em 1958, a obra de certo modo resolvia um impasse que desde cedo acompanhou o cinema: seria o cinema a arte da realidade pretendida pelos inventores do cinematógrafo, os Lumières, ou um truque de mágica, como nos filmes do ilusionista Georges Mélies? Como disse Godard (de novo), em texto sobre o filme de Rouch: "todo documentário tende à ficção, e toda ficção tende ao documentário".

Ao se tornarem Edward G. Robinson e Dorothy Lamour, os trabalhadores africanos do filme não se fizeram de farsantes e nem o filme se tornou menos verdadeiro, ao contrário, ao se reinventarem para a câmera, os “atores” realmente expuseram seu sentimentos. Ao pender para a ficção, Rouch documentou as almas dos seus personagens.

Em uma cena deflagradora, Robinson leva Dorothy para o baile. Eles bebem e danças após uma semana difícil de trabalho, dançam entre paredes decoradas por pinturas de casais negros dançando, imagens rústicas de cores tão vivas e destoantes como as do próprio filme.


Em meio a essas figuras na parede, há um cartaz de um filme estrelado por Marlon Brando. O que nos diz essas coisas? Assim como o astro branquelo se enfia e rouba a beleza das expressões artísticas locais, um turista italiano tira Dorothy dos braços de Robinson e a seduz com seu charme ocidental - como os heróis europeus e americanos seduziram os jovens filmados por Rouch ao ponto deles assumirem seus nomes.


O filme de Rouch tem muito desse espírito utópico de que o cinema pode ser importante, que o cinema pode dizer muito sobre nós mesmos e, até mesmo, como queria o cineasta Rainer W. Fassbinder, salvar-nos. "Eu, um negro" é minha resposta para a pergunta “o que é o cinema?” porque não é uma obra sobre as precariedades da vida de um lugarejo africano nem apenas sobre a feroz influência que o ocidente exerce sob a região.


"Eu, um negro" aborda questões como as levantadas acima, mas o faz contaminando cada minuto do filme com o senso de aventura e o calor passional de alguma fita do Tarzan com a atriz Dorothy Lamour. A vida caminha no filme de Rouch, mas caminha paralelamente pelas estradas do cinema.

O que é cinema? Cinema é o filme "Eu, um Negro", mas é também a chegada do trem dos Lumières ou as cabeças giratórias de Mélies; a história da França feita a estória de uma adolescente mimada em "Maria Antonieta", de Sophia Coppola, ou a estória da viagem entre mãe e filha feita a História da civilização européia no "Um Filme Falado", de Manuel de Oliveira. Bem, cinema é essa arte do real feito pela ilusão, esse eterno mistério.