quinta-feira, 5 de junho de 2008

O CASO GODARD

PUBLICADO NA FOLHA DA REGIÃO NO DIA 02 DE DEZEMBRO DE 2007


Jean-Luc Godard. Não há nome mais temido na história do cinema do que o deste cineasta franco-suíço. O nome dele remete a tudo aquilo que o cinema possa ter de mais insuportável e chato, quando não incompreensível. Basta citar seu nome para uma multidão se dissipar, como se ele encarnasse a imagem do diabo.

Seria Godard um idiota? Um chato? Um gênio? Nem tão ao norte ou ao sul. É certo que ele tenha um pouco de cada uma dessas características, o curioso é notar que ele sempre foi o primeiro a reconhecê-las - em seus filmes, já interpretou um velho doente e descortês ou um homem que esbofeteia o próprio rosto.


O problema maior desse artista são os seus seguidores mais fiéis, até mais que os seus sonsos detratores, pois o “caso Godard” muito se assemelha ao “caso Freud” e até ao “caso Marx”.

Como Godard, Freud e Marx foram pensadores que desenvolveram teorias e raciocínios dos mais estimulantes e fascinantes, idéias que, ao longo dos anos, foram deturpadas por alguns seguidores.

O equívoco não está nas obras de Freud, mas de pseudo-intelectuais que simplificam seu conceito de “interpretação dos sonhos” a truques de adivinhações; o erro não está no Manifesto Comunista de Marx, mas nos supostos esquerdistas que transformaram o texto dele em almanaques para suas propagandas políticas.


O engano também não está com Godard ou nos seus filmes, mas em pessoas que criam comunidades no orkut, intituladas “God-Art” ou “In God-ard We Trust”, espaços onde o debate é substituído por um fervor xiita sobre o trabalho do cineasta. Fervor que assusta e espanta os iniciados.

Sobre o trabalho de Godard, algumas verdades devem ser ditas. A primeira delas é que o cineasta não é nenhum Steven Spielberg, ou seja, não se pode esperar de seus filmes que o Holocausto seja transformado numa Disneylândia - fato ocorrido no filme “A Lista de Schindler” -, pois o cinema não é nenhuma sala de brinquedos.


Outra coisa importante: não se pode achar que vendo seu último filme disponível nas locadoras, como é o caso de “Nossa Música”, todo o emaranhado de citações e reflexões compiladas por ele será compreendido.

Godard, porém, é dos casos raros de artistas que conseguiu manter um empreendimento artístico coerente, tendo construído solidamente uma filmografia que vista plenamente evidencia uma postura cinematográfica muito clara.

Nos tempos em que trabalhava como crítico da revista Cahiers du Cinema, por exemplo, muito por ele foi martelado a respeito de como o cinema documental tende ao de ficção, e vice-versa.


Essa idéia não era somente um pensamento inebriado por um clima ameno de qualquer cafeteria francesa, foi uma obsessão que quando se tornou cineasta resolveu continuar a perseguir.

Em seu primeiro longa-metragem, “Acossado”, não estava em pauta simplesmente prestar homenagem aos filmes policiais B norte-americanos que tanto incomodava o cinema “qualidade” feito na França e tão combatido por Godard.


“Acossado” era um manifesto político e estético por um cinema que Godard ansiava. Era um digno e subversivo policial classe B, mas não só. Também transpirava uma veia ensaística, que caracterizaria muitos filmes seqüentes do realizador, e ainda podia ser visto como um documentário sobre o ator Jean-Paul Belmondo, colaborador fiel de Godard.

No filme “O Pequeno Soldado”, um personagem que empunha uma câmera fotográfica diz ser o cinema a arte da verdade a 24 quadros por segundo. Em uma frase, Godard estava a conciliar-se com a teoria do crítico e mentor André Bazin de ser o cinema a arte da realidade.

Em “Viver a Vida”, Anna Karina faz uma prostituta que chora, em close-up, ao ver Joana D’Arc chorar do mesmo modo na tela do cinema, no filme “A Paixão de Joana D’Arc”. Com planos, imagens aparentemente inconciliáveis, o realizador promoveu a comunhão cósmica de dois filmes, e dois planos, por meio da montagem cinematográfica.


Godard estava ali a esboçar o trabalho que consumiria mais de dez anos de sua vida, entre os anos 80 e 90, na confecção dos vídeos “História(s) do Cinema”.

O fato é que Godard nunca separou o crítico do diretor de cinema. Quando Godard escrevia sobre cinema, ele já estava a fazer filmes e quando passou a realizar filmes, continuou a refletir sobre a arte.

Na verdade, como bem disse certa vez o crítico Inácio Araújo, Jean-Luc Godard é meio que um Chacrinha erudito. Ele não veio ao mundo para explicar, mas para confundir.


Num mundo onde o acúmulo de informações via televisão ou internet, no fim, acaba por favorecer a desinformação generalizada, Godard é o homem dos questionamentos, das reflexões. Das perguntas, não das respostas.

Não há exemplo melhor desse princípio godardiano do que uma cena do filme “Nossa Música”: Godard, interpretando a si próprio numa palestra, permanece em silêncio, perplexo e sem respostas, ao ser perguntado se o digital seria o futuro do cinema.


A única certeza para Godard é a crença de ter sido o cinema, o seu cinema, o único instrumento capaz de compreender e a dispor em uma narrativa a história do homem, a história do século XX.

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