domingo, 13 de abril de 2008

ANTONIONI ALCANÇOU A ALMA HUMANA

PUBLICADO NA FOLHA DA REGIÃO NO DIA 19 DE AGOSTO DE 2007


Não bastava Ingmar Bergman, o cinema perdeu na mesma semana o diretor italiano Michelangelo Antonioni.

Antonioni, assim como o cineasta sueco, foi um dos precursores do cinema moderno. Foi também cultuado por sua "profundidade" e por ser o poeta da incomunicabilidade, termo a qual foi submetido por ter realizado uma trilogia sobre o tema, composta pelos filmes "A Aventura", "O Eclipse" e "A Noite".

Com sua morte, o cinema não perdeu o "poeta da incomunicabilidade", perdeu sim um dos poucos cineastas que foi capaz de transpor, com uma câmera, a alma dos personagens para a superfície da tela do cinema.


No filme "O Grito", de 1957, por exemplo, não há brados desesperados do personagem, um trabalhador à deriva no mundo com sua pequena filha após ser deixado pela mulher. Quem grita por ele são as paisagens invernais pelas quais caminha – a fábrica em que trabalha, o mastodonte industrial, e também as árvores mortas e ruas desertas.


Dos primeiros filmes, "O Grito", é a obra que evidencia as características que permeariam seus filmes seqüentes. Nele está presente a transformação de cenários modernos em espaços tão vazios e enevoados quanto seus personagens - característica que teve com “O Deserto Vermelho”, de 1964, o ponto de ruptura, no qual houve a substituição do preto e branco pela experimentação das cores - e o interesse por personagens que perambulam pelo mundo em busca de alguma verdade e/ou identidade - o filme "Blow-up - Depois Daquele Beijo" serve de exemplo.


Se "O Grito" é a obra que apresenta todas as obsessões caras ao cinema de Antonioni e "O Deserto Vermelho" representa o ponto de ruptura, "Profissão: Repórter", de 1975, pode ser considerado o seu "filme-testamento".

Se as paisagens desse filme não mais têm força para gritar, o registro em cores do deserto africano hesita entre a agonia que acompanhou o primeiro momento da carreira do cineasta e o transe em que entrou quando deu adeus à Itália e passou a vagar pelo mundo. Tudo isso enquanto o personagem de Jack Nicholson, um cineasta-repórter, se mete em uma troca de identidade com um falecido traficante de arma.


Como o cineasta-repórter do filme, Antonioni deixou suas origens para investigar outras culturas, excursão que lhe rendeu filmes na Inglaterra (“Blow-Up”), EUA (“Zabriskie Point”) e China (“Chung Kuo - China”). E assim como o personagem encontra na troca de identidade a chance de se reencontrar no mundo, Antonioni viu na produção internacional de “Profissão: Repórter” (produzido na Itália, França e Espanha e falado em pelo menos quatro línguas, entre elas o espanhol, inglês, alemão e francês) a oportunidade de ir um pouco além, bifurcar suas experiências no cinema italiano com a que teve no cinema internacional.


Trafegar da cidade para o deserto, do cenário impessoal ao natural, do corpo para a alma, são todos os movimentos que fizeram o cinema de Michelangelo Antonioni e que tem em “Profissão: Repórter” o movimento derradeiro na cena da morte de Jack Nicholson:


Ao se ouvir o disparo de um tiro, a câmera se desloca do seu ponto originário, junto ao corpo estendido do ator na cama, e passa por entre as grades do quarto em que estava. Já na rua desértica, próxima das pessoas que passam por ali, a câmera faz o movimento contrário e se aproxima do quarto enquanto as pessoas se dissipam. Aproxima-se para fitar o corpo sem vida do repórter que dá o título do filme.


Num único plano, de seis minutos aproximadamente, sem sequer um corte, o cineasta não só transpôs a alma humana para a superfície da tela como fez da câmera, do cinematógrafo, a própria alma de Jack Nicholson. Belo final para um filme, belo canto derradeiro para uma carreira que insistiu em se prolongar um pouco mais, rendendo outras obras não tão expressivas quanto essa.


Antonioni faleceu, mas ali, no plano final de “Profissão: Repórter”, ele já havia se tornado imortal.

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