quarta-feira, 9 de abril de 2008

RIO BRAVO: A REABILITAÇÃO DO CINEMA

PUBLICADO NA FOLHA DA REGIÃO NO DIA 12 DE AGOSTO DE 2007


É difícil abordar os filmes de Howard Hawks, mas eles preservam mistério não porque as narrativas são truncadas ou por haver rebuscamento em seu estilo, pelo contrário, a simplicidade e a eficácia com que narra suas histórias resultam em dificuldades com as quais os críticos deparam ao se tentar abstrair idéias de uma arte tão concreta.

Um caubói sujo e cansado entra num saloon. Transita da noite externa para as laterais iluminadas do recinto como se ainda permanece na escuridão. As pessoas notam sua presença quando um homem no balcão ri do caubói e lhe joga uma moeda em um gesto de desprezo. O caubói, identificável como um bêbado, humilhantemente se agacha para pegar sua esmola. A câmera também agacha e com ele se posiciona para cima a olhar a mítica figura de John Wayne, que observa a degradação do indivíduo.


Nenhum diálogo, nenhum malabarismo da câmera ou mímica dos atores. Basta Dean Martin, que interpreta o bêbado, levar sua mão ao rosto para transmitir sua insegurança, basta o lançar da moeda do homem mal-encarado para que saibamos ser Dean Martin o motivo de chacota da vila e basta a câmera se abaixar e olhar John Wayne para que o espectador tenha a chance de se reerguer com Dean Martin.

Não há barreiras entre o espectador e a narrativa do faroeste “Onde Começa o Inferno”, a quintessência do cinema de Hawks que acaba de receber uma edição dupla em DVD. O que existe é a transparência da direção de Howard Hawks.


O filme é sobre o processo que levará o xerife Dean Martin à reabilitação, sobre o movimento que ele fará para deixar o chão e ficar à altura de todos os outros homens. Howard Hawks parecia entender bem a premissa porque, assim como Dean Martin, vinha de um retiro de quatro anos do cinema após o fracasso de sua obra anterior, “Terra dos Faraós”.

Soma-se ao tema do filme a convicção de Hawks no profissionalismo, seu apego aos círculos de amizades masculinas e uma visão ao mesmo tempo sedutora e moderna das mulheres. É o terreno hawksiano por excelência, que faz de “Onde Começa o Inferno” a obra em que todas suas convicções passadas são externadas sem subterfúgios e o ponto no qual seu cinema futuro se apoiaria.


A rarefação de cenários e a utilização insistente da cadeia local como palco para a ação levam à depuração do estilo hawksiano. É como se ali Hawks colocasse seu cinema em um microscópio, tornando possível uma observação mais cuidadosa dos procedimentos tomados por ele.

A cena da reabilitação de Dean Martin, por exemplo, é a mais fina expressão do que é o cinema: como no início, o xerife entra no bar. Não mais para beber, mas para capturar o assassino de um amigo. Os caubóis riem da cara de Martin e ao invés de lhe passar informações sobre o pistoleiro, atiram moedas para o xerife tomar um trago.


Enquanto desenrola a intervenção frustrada de Martin, o espectador é informado pela câmera de Hawks que o pistoleiro procurado se esconde no sótão do bar. E ele sua como um porco.

O bandido está no alto, Dean Martin está abaixo. Acima um bandido prestigiado, abaixo o xerife fracassado. A moral da história é dada através da disposição dos atores em cena e da posição da câmera do cineasta.

Dean Martin parece desistir de procurar o pistoleiro e pede um copo de cerveja. Sob os olhares de John Wayne, o responsável por levantá-lo no início, ele hesita em pegar a caneca. O tempo de espera é o suficiente para que gotas de suor caiam no copo e Dean Martin desista de beber para se posicionar e atirar no assassino.


O pistoleiro cai morto. Ele não está mais numa posição moral/cinematográfica acima do xerife bêbado. Ao redor do bar, todos os homens que riam de Martin se calam e o xerife não mais empunha sua arma com tremedeiras de ressaca. Ele foi reabilitado, pela câmera de Hawks.

O cinema de Howard Hawks não é simplesmente a beleza de um cinema passado, mas de um cinema insuperável, que seduz e assombra muitos cineastas. É o pilar no qual se construiu, por exemplo, toda a carreira de John Carpenter. Não é pouca coisa.

“Onde Começa o Inferno” deveria ser obra de cabeceira para os neófitos cinéfilos e realizadores. Quem sabe assim o cinema não fosse reabilitado, como Dean Martin no filme? Enquanto isso, atura-se filmes “chumbados” como “Transformers”.

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