quinta-feira, 15 de maio de 2008

RALO NÃO TÃO FEDIDO

PUBLICADO NA FOLHA DA REGIÃO NO DIA 21 DE OUTUBRO DE 2007


Construir um filme todo a partir de um personagem odioso e fazer o público cúmplice de suas ações não é uma questão nova no cinema, mas é esse o ponto de partida do filme “O Cheiro do Ralo”, segundo longa-metragem dirigido por Heitor Dhalia.

O ser desprezível do filme é Lourenço, o único personagem a possuir um nome na película. Lourenço mantém uma loja de objetos usados e a trata como seu reino: lugar onde manda dar meia volta e pegar novamente um ônibus qualquer interessado em vender alguma máquina pesadíssima. Faz isso só para ver o indivíduo se ferrar.

Em compensação, é seduzido por qualquer panaca que demonstre estar em sintonia com ele e que deseje vender coisas inúteis ou inusitadas, como uma perna mecânica ou um olho humano.


O ralo mal-cheiroso do título não é apenas o ralo do banheiro que fica ao fundo da loja de Lourenço, é uma metáfora para o fedor do próprio personagem. A merda impregnada no seu reino é, no fundo, a materialização da moral desse personagem que sonha com o dia em que comprará a bunda da garçonete (Paula Braun) que trabalha no boteco freqüentado diariamente por ele.

Como tornar o público refém desse personagem, fazê-lo gostar dele e ser cúmplice dos seus atos? As respostas seriam encontradas facilmente no desempenho de Selton Mello, que encarnou o papel de Lourenço, se não fosse a covardia da direção de Dhalia.

Em poucas vezes se viu Selton Mello tão bem em um filme. É um ator que interpretou muitos papéis brilhantemente, mas o seu Lourenço não é como o trapaceiro simpático da série “O Auto da Compadecida” nem um resumo do truculento marginal de “Garotas do ABC”, ele é a síntese disso tudo.


Selton Mello acredita na cafonice do seu personagem, em seu humor hostil, nas suas explosões e contensão. No filme, Selton Mello está com aquele cara insuportável, ele é ele, mas o filme parece hesitar nessa adesão. E nesse ponto a obra morre.

Enquanto Mello entra de cabeça na miséria, no ralo do protagonista, mostrando pouco se importar com o cheiro de merda que possa contaminá-lo, o filme se põe em posição superior ao personagem.

As coisas começam bem. A imagem que abre o filme é um plano-seqüência dos glúteos da garçonete, que caminha até o bar onde se encontra Lourenço. O plano dá a entender que o cineasta está com o personagem, acompanha-o em sua obsessão.


Provavelmente foi Charles Bukowski que afirmou ser a bunda (feminina, é claro) a cara da alma do sexo. Na imagem inicial do filme, o cineasta parecia embarcar nas idéias insanas do escritor, porém, esse plano contínuo é apenas figurativo.

Dhalia não está com Lourenço, pois o plano existe simplesmente para mostrar a perversão do personagem e fazer prosseguir a idéia de que ele compraria aquela bunda, como se fosse um objeto de sua loja.

O que se segue a esse promissor plano inicial é um encadeamento de imagens, de idéias, que dão a entender que em nenhum momento as mãos do cineasta se sujarão como as de Lourenço.

Há um momento esclarecedor nesse aspecto: nas cenas de negociação, o cineasta insiste em mostrar um pôster do filme “The Getaway”. Qual a finalidade disso? A explicação surge adiante, quando um rapaz tenta vender, sem sucesso, um maço de cigarros autografado por Steve McQueen, o astro do cartaz.


Dhalia está acima do personagem, não por acaso mostra constantemente aquele pôster antes da cena chave. O realizador conhece o ator e o filme “The Getaway”. Lourenço, em sua abjeção, não.

Diferente de Martin Scorsese e Abel Ferrara, dois cineastas que enfrentaram as mesmas dificuldades de se trabalhar um personagem odioso, não há sintonia entre o objeto filmado e quem o filme em “O Cheiro do Ralo”. Dhalia não mantém cumplicidade com Lourenço, o que torna difícil embarcar na fetidez do personagem.

Scorsese, em 1983, fez “O Rei da Comédia”, filme tão hostil quanto seu personagem, um aspirante à comediante, sem talento e escrúpulos (Robert De Niro), que seqüestra seu ídolo (Jerry Lewis) no intuito de substituí-lo em seu programa televisivo.


Por sua vez, Ferrara, em 1992, acompanhou, sordidamente, as aventuras dopadas do policial marginal interpretado por Harvey Keitel em “Vício Frenético”.

Enquanto Scorsese e Ferrara contaminaram seus filmes com os espíritos dos seus protagonistas, o ralo de Heitor Dhalia não se mostra tão fétido quanto o de Lourenço.

Faltou à Dhalia chafurdar na lama com Lourenço para dali extrair uma beleza torta, mas o realizador preferiu creditar as nádegas da garçonete como mero objeto e efetivar o caráter do seu personagem como um homem desprezível. Colocando-se acima de Lourenço, o resultado do filme é tão diminuto quanto o caráter do protagonista.

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