sexta-feira, 7 de março de 2008

A BELA INTRIGANTE

PUBLICADO NA FOLHA DA REGIÃO NO DIA 25 DE FEVEREIRO DE 2007


Há uma cena em “Dália Negra”, de Brian De Palma, no qual Elizabeth Short (Mia Kirshner), a aspirante à atriz que dá título ao filme, encena uns diálogos do filme “E o Vento Levou” durante uma audição para atrizes. Ela realiza ali todo o monólogo de Scarlett O’Hara, dizendo que nunca mais passará fome ou viverá da miséria.

O diferencial é que enquanto Vivien Leigh expressava a miséria da personagem em meio à Guerra da Secessão, Elizabeth perverte o sentido originário do recito e o incorpora à sua realidade.

Quando Elizabeth diz que nunca mais passará fome, ela não diz num tom revoltoso, mas sim em tom sedutor e extremamente ambíguo. Não se sabe de onde vem a miséria e a fome da Dália Negra, muito menos se sabe o porquê de recitar o diálogo de “E o Vento Levou” em um teste para um filme de terceira categoria - talvez ela queira seduzir o diretor, ou simplesmente mostrar uma competência que ela não tem - e é sob a intensidade de névoas que Brian De Palma faz sua versão para o best-seller de James Ellroy.


Assim como Elizabeth Short, De Palma não adapta a história de James Ellroy, ele a perverte. Se o livro “A Dália Negra” é repleto de intrigas, personagens, tramas e sub-tramas, o caminho que De Palma faz no filme é o inverso.

O cineasta apenas mantém a aura de mistério que envolve aquela mulher que foi retalhada e assassinada e faz com que essa aura envolva seus personagens masculinos, dois policiais, ao ponto de tornar qualquer caminho lógico inviável.

A opção do diretor é evidenciada nesse diálogo: “eu não entendo arte pós-moderna”, diz o policial interpretado por Josh Hartnett ao fitar uma pintura; “a arte pós-moderna também não entende você”, retruca Hillary Swank, que faz o papel de uma riquinha sósia de Elizabeth Short.


Em “Dália Negra”, como em todos os filmes de Brian De Palma, há apenas a imagem que hipnotiza, que mente e ao mesmo tempo revela algo (que seduz e provoca repúdio) e o ser hipnotizado, seduzido e provocado.

A lógica do cinema de Brian De Palma é a lógica rudimentar da arte: há a imagem projetada - a Dália morta, as suas fotos, a pintura do homem que sorri com o sorriso morto da Dália, as imagens do teste para atrizes, as imagens do filme mudo “O Homem que Ri” que remete ao sorriso dilacerado de Dália - e há o sujeito que olha - Josh Hartnett, que representa o espectador.

É um cinema que dialoga com si mesmo o tempo todo, que se põe em cheque a cada cena. Já não era assim em “Dublê de Corpo”, onde uma mulher se passava por outra para justificar um assassinato testemunhado por um voyeur?


Ou então em “Olhos de Serpente”, filme onde toda imagem que se faz por verdadeira acaba revelando-se falsa, a começar pela loira que se revela morena? Já em “Dália Negra”, o policial começa a investigar sobre a morte de Elizabeth em uma boate de lésbicas, local que De Palma filma com sua habitual sobriedade, mostrando que ali nem tudo é o que parece - o que parece homem na verdade pode ser uma mulher.

As imagens mentem e os homens continuam a ser seduzidos por elas, assim como nos filmes os homens continuam a cair de quatro pelas mulheres. O filme “Dália Negra” está longe de ser um filme de intriga (do famoso “quem é o culpado?”), o filme está mais pra uma ode a esse certo fascínio, sobre essa arte intrigante que é o cinema.


Os homens dos filmes de Brian de Palma continuam estúpidos e a cair de quatro pelas belas intrigantes que povoam seus mundos - Hartnett cai por Mia Kirshner, Hillary Swank e Scarlett Johansson - e nós continuamos aqui a cair de quatro por essa bela intrigante, que é a arte cinematográfica do cineasta - os filmes “Trágica Obsessão”, “Vestida para Matar”, “Os Intocáveis” e, claro, “Dália Negra”.

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