quarta-feira, 5 de março de 2008

GRANDE E NOVO FILME VELHO

PUBLICADO NA FOLHA DA REGIÃO NO DIA 21 DE JANEIRO DE 2007


O filme “Miami Vice” chegou a estrear em uma das salas do cinema de Araçatuba, onde se manteve somente por uma semana em cartaz. A recepção apática que acolheu o filme em sua estréia por aqui, e nos cinemas ao redor do mundo, é resultante de vários motivos, dentre eles o fato da película ser uma adaptação infiel (“radical” não seria uma má definição) da série televisiva homônima que fez sucesso nos anos 80.

Sabe-se que Miami é o lugar onde hispano-americanos se misturam com brasileiros que, por sua vez, reencontram seus conquistadores portugueses. Miami é o paraíso daqueles que vivem à margem nos EUA, é o lugar das mil e uma culturas, línguas e texturas. Pertencer a Miami seria o mesmo que pertencer a lugar nenhum, e é esse sentimento de não-pertencimento que acomete a dupla de policiais da unidade especial de Miami (Colin Farrell e Jamie Foxx), agentes que trabalham infiltrados em grupos criminosos.

Foi para imprimir no filme esse sentimento que o cineasta Michael Mann (de “Fogo contra Fogo” e “O Informante”), ao contrário da série, deixou de lado a beleza paradisíaca dos cartões-postais para capturar os nuances de um ambiente sombrio, de um lugar onde o sol irradiante é constantemente encoberto por nuvens sempre carregadas em um céu saturado.


Os altos contrastes obtidos pela captação digital (que substitui a película em partes do filme) não só colocam o espectador em contato direto com os dilemas dos personagens, fazendo-o partilhar da experiência de viver entre uma identidade forjada e a realidade, como demonstram um notável avanço em relação aos experimentos realizados anteriormente pelo cineasta no filme “Colateral”.

A expressividade obtida pelo registro digital - e sua funcionalidade dramatúrgica - é de um espírito desbravador que nada fica a dever ao uso do preto e branco, em 1940, feito por John Ford no filme “As Vinhas da Ira” ou, ainda, o uso do technicollor feito por Samuel Fuller no filme “Casa de Bambu”, de 1955.

As performances dos atores estabelecem as proporções das fronteiras e tratam também de chocá-las: as atuações dos atores quando estão infiltrados são sempre carregadas, próximas dos gestos rígidos e brutos de um ator como John Wayne; já quando a dupla contracena fora do perímetro criminoso, as atuações tendem a se concentrar em expressões faciais minimalistas, em desempenhos mais relaxados ao estilo Paul Newman.


Mas é quando os policiais estão nos braços de suas mulheres que a linha divisória se revela tênue: em uma cena de sexo com sua namorada (cena no qual deveria predominar a transparência), Jamie Foxx “atua” ao fingir uma ejaculação precoce para “pregar uma peça” em sua parceira, já Colin Farrell tenta retomar sérias discussões de negócios com a contadora dos traficantes (interpretada por Gong Li) após se apaixonar por ela e chora ao tomar banho em sua companhia - não se esquecendo que ele é o agente infiltrado que deve desmascarar os traficantes para quem Gong Li trabalha.

Os papéis femininos no filme são importantes, eles funcionam como catalisadores das contradições dos personagens masculinos - já era assim em “O Último dos Moicanos”, outro filme do cineasta, no qual o índio bastardo colocava em cheque suas origens ao guiar e proteger uma jovem inglesa.

Em “Miami Vice” as mulheres são filmadas sempre em marcações privilegiadas, em angulações que as fazem parecer soberanas na tela - a primeira aparição de Gong Li é feita somente ao final da primeira encenação dos policiais como bandidos, em um fechamento de negócios no qual é ela quem dá o veredicto.


Bem, talvez não tenha sido “apatia” que o filme causou no público em sua estréia, talvez o sentimento fosse um outro, mais estimulante: estranhamento. Estranhamento porque vendo o trailer ou o pôster do filme pensa-se que o filme se trata apenas de um típico filme de gênero policial - com algumas corridas de carros turbinados, mocinhas indefesas e bandidos malvados -, mas vendo o filme percebe-se que a coisa não é bem por aí.

O filme tem carros turbinados, mas as corridas que esses carros fazem é carregada de um sentido muito mais dramático e orgânico do que dos filmes que se vê toda semana nas locadoras. Há algumas mocinhas, mas elas estão longe de serem indefesas, elas sofrem nas mãos dos homens tanto quanto os homens sofrem nas mãos delas. E sobre os “bandidos” pode-se dizer que eles carregam olhares tão complexados quanto dos “mocinhos”.

O cinema que interessa a Michael Mann não é o de joguetes de gêneros, não é o cinema de mero entretenimento, é sim um cinema que busca transmitir uma experiência e capaz de fazer da câmera um corpo que se movimenta, reenquadra e oculta de modo tão diligente quanto um golpe do personagem desferido contra seu oponente. Um cinema que faz da montagem o momento de restituir ao corpo sua plenitude (a encenação) que fora estripado (decomposto em planos, quadros) nas filmagens.

Um cinema extremamente palpável e, ao mesmo tempo, cósmico. Documental na medida em que filma com câmeras leves em locais reais, como a Ciudad del Este, e ficcional porque faz tanto as imagens quanto os sons irem além da descrição, transbordar em vida. É um cinema que assim como os personagens, transita em linhas tênues (entretenimento/arte, película/digital, clássico/moderno) e delas tira sua força.

John Ford, cineastas de obras-primas como “Rastros de Ódio” dizia que para um diretor realizar um grande filme ele deveria mostrar três coisas: uma corrida de cavalos, uma montanha alta e um casal dançando. Se substituirmos os cavalos por carros, montanhas por arranha-céus e valsas por música eletrônica, o que Michael Mann nos dá com “Miami Vice” é nada além de um grande e novo filme velho.

Nenhum comentário: