domingo, 2 de março de 2008

O MUNDO É UMA CHANCHADA

PUBLICADO NA FOLHA DA REGIÃO NO DIA 31 DE DEZEMBRO DE 2006


O que faz uma novela como “Pé na Jaca” se destacar em meio aos lugares comuns que povoam todas as outras novelas? Primeiramente pode-se dizer que por não ser exibida em horário nobre, a novela de Carlos Lombardi não é afeita à nobreza dos temas e as boas intenções de personagens. A novela também não parece constituir em sua narrativa um apelo às normas do “realismo” ou ao “naturalismo” nas atuações do elenco - pelo contrário, as atuações estão em níveis caricaturescos e a inserção da câmera nos cenários é feita através de incessantes cortes entre planos bem similares, uma câmera ágil e não “omissa” como as que se encontra em outras novelas. Logo é uma novela que propicia ao seu autor vôos mais arriscados na composição de sua trama, propícia a ele correr riscos inimagináveis para uma novela “nobre”.

Sabe-se que as novelas globais produzidas para o horário das 19 horas são caracterizadas pelo humor, mas o humor de Carlos Lombardi é diferente de todos os outros autores que já produziram para o horário. Diferentemente do humor sofisticado de um Miguel Falabella, de um cinismo calculado ou pornô-chique, Carlos Lombardi já mostrara em outros trabalhos (a novela “Kubanacan”, por exemplo) que herdou da (pornô) chanchada o gosto pelo “mau gosto”.


Nada de “bossa nova” na trilha sonora ou personagens em chatíssimas conversas ao melhor estilo “a vida como ela é”. Lombardi é inteligente o suficiente para perceber que a vida está mais pra chanchada do que pra qualquer outra coisa e, sendo assim, ele avacalha (“quando não se pode fazer nada, avacalhe”, já aconselhava o cineasta Rogério Sganzerla com o filme “O Bandido da Luz Vermelha”). Coloca freiras taradas, patricinhas recauchutada, conquistadores baratos, idiotas potenciais no mesmo saco onde se encontram terroristas, políticos corruptos e enervantes modelos. O que Lombardi tira dessa mistura é nada menos que uma visão “panorâmica” da caótica realidade noticiada no telejornal que dá seqüência à novela.

O capítulo que foi ao ar no dia 22 de dezembro é exemplar nesse sentido: Murilo Benício, que interpreta Arthur, um engravatado otário de uma empresa corrupta, participa da bancada de um programa televisivo de debate. Nesse programa Arthur teria a chance de rebater as acusações de que seria o responsável por esquemas ilícitos da antiga empresa em que trabalhava, mas estando ao vivo no programa não é bem isso que o personagem presencia. Ele é maltratado pela apresentadora (interpretada exageradamente no estilo “mulher-homem”, ou ao estilo Heloísa Helena), questionado por um autista professor de universidade e pisoteado por uma platéia que mais parece marionete, guiada por placas com inscrições “aplausos”, “vaias”. Enquanto a apresentadora frisa as qualidades de seu programa como sendo “imparcial”, descobre-se que ela é amiga do verdadeiro corrupto da ex-empresa no qual Arthur trabalhou.


É provável que seja mera coincidência (pois se não fosse Carlos Lombardi já teria sido demitido), mas esse episódio encenado na novela foi ao ar na mesma semana em que explodiu em toda a mídia a acusação de um ex-jornalista da Rede Globo acerca de uma possível parcialidade nas coberturas da última eleição. O circo encenado na novela, os momentos rocambolescos são então vivenciados pelos telespectadores com aquela terrível familiaridade.


Essa sintonia com o mundo colocada em cena através de uma aposta no exagero é o suficiente para que “Pé na Jaca” se coloque anos luz à frente dos merchandising sociais, das boas intenções (do qual o inferno já deve estar mais do que cheio) de uma novela como “Páginas da Vida”. Lombardi está tão à frente de todos que ainda foi capaz de revelar a verdadeira vocação novelística do ator Murilo Benício, que nem é de galã e muito menos de personagem sério, mas sim a vocação para o otário de um humor anacrônico, e também autocrítico (clássico, e também moderno).

As bundas, e as suas donas, estão lá para serem “faturadas” por um Marcos Pasquim sempre descamisado, entre uma narrativa e outra. Se o mundo virou uma chanchada, as bundas turbinadas das atrizes de “Pé na Jaca” ganham em expressividade na medida em que essas bundas, tão bem delineadas quanto falsas, estão sempre ao alcance da câmera, ao alcance da superficialidade do olhar humano, olhar cansado que implora por um estímulo tão primitivo como o humor genuíno adotado na dramaturgia da novela. É caso típico da novela que olha para o espelho e ri de si mesma, é a canalhice no estado mais puro (honestidade?) num mundo não menos canalha.

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