segunda-feira, 3 de março de 2008

O PROTÓTIPO DO HERÓI INVENCÍVEL

PUBLICADO NA FOLHA DA REGIÃO NO DIA 07 DE JANEIRO DE 2007


Os produtores da franquia 007 foram buscar na primeira história de Ian Fleming, “Cassino Royale”, a fonte para injetar um novo fôlego nas aventuras do agente secreto inglês nas telas do cinema. Aproveitando o fato de que essa história foi adaptada de forma zombeteira e não-oficial, em 1967, com o ator David Niven no papel principal, retroceder à estaca zero não parecia uma má idéia.

Recontar uma história que antes havia sido mal contada não pareceria aos fãs da série uma heresia e retornar ao princípio de uma saga, vendo o recente sucesso da franquia do homem-morcego com o prelúdio “Batman Begins”, poderia ser uma aposta acertada (principalmente porque os últimos filmes, com Pierce Brosnan, sofriam de um anacronismo atroz).

Eis que anunciam um novo ator, o brutamonte Daniel Craig (que havia atuado anteriormente em “Munique”, de Steven Spielberg) para interpretar James Bond em uma trama revigorada, que já não envolve vilões soviéticos e comunistas, mas que se ancora em vilões que aterrorizam o imaginário contemporâneo: o terrorismo globalizado e seus investidores invisíveis. Imaginário porque além de povoarem a realidade do neoliberalismo econômico, são vilões requisitados em obras de ficção do nosso tempo, vide a série “24 Horas”.


É uma vilania que se não tem uma face intimidadora e inesquecível, como de certos vilões que fizeram sucessos em outras fitas da série, é uma vilania que aterroriza exatamente por se colocar invisível e covardemente em cena - se a traição ao espião não se faz por meios virtuais (através de senhas bancárias ou celulares), ela se perpetua por envenenamento de bebidas ou com torturas aos órgãos sexuais. Bem, não poderia ser uma contextualização mais desafiadora para a introdução de um James Bond inexperiente, que acaba de receber a sua licença para matar.

Distante da mítica do espião eternizado por Sean Connery, ou satirizado por Roger Moore, o Bond de Daniel Craig se aproxima do herói imperfeito que fez a carreira de Bruce Willis, o John McLane da cine-série “Duro de Matar”: ele leva tombos quando tenta pular em lugares arriscados, ele mancha o paletó de sangue numa briga e pouco se importa se o drinque for mexido ou batido. O que se vê em todo o filme é o mito em construção, não por acaso a apresentação que se transformou marca registrada nos filmes da série (o “Bond, James Bond”) só é pronunciada ao término da projeção.


O que faz de “Cassino Royale” um filme bem-sucedido é que mesmo apostando todas as fichas nesse “mito em construção”, o filme em nenhum momento descamba para a psicologia barata de querer explicar a mítica envolvendo esse personagem que conhecemos tão bem em sua frieza, charme e sexismo. Se em “Cassino Royale” vê-se o modo como James Bond adquiriu seu primeiro Aston Martin (em um jogo de pôquer), a intenção é menos a pretensão de “revelar” o personagem do que brincar com as referências que rondam a franquia.

O que faltou ao longa foi “estilo”, algo que inexiste na direção de Martin Campbell. Condução careta que só não compromete porque o carisma de Daniel Craig e a graciosidade da jovem atriz francesa Eva Green (que faz uma das “garotas de Bond”, Vesper Lynd) seguram a peteca nas cenas primordiais do filme, como as passadas em meio ao torneio de pôquer no Cassino Royale, ambiente onde se concentra boa parte da ação.


Martin Campbell, cineasta de confiança dos produtores - que já o escalara no “007 contra GoldenEye” -, nunca foi dos mais expressivos diretores do cinema de gênero e, como um burocrata, faz desse trabalho apenas a materialização pura e simples do roteiro, deixando livre o caminho para que o brilho incida apenas no trabalho dos seus intérpretes e nos locais paradisíacos escolhidos para as filmagens (Bahamas e Veneza, por exemplo).

Os detratores das peripécias surrealistas que caracterizaram a franquia ao longo de sua história poderão dar uma nova chance ao herói - não mais infalível e longínquo da realidade -, já os velhos “bondmaníacos” verão finalmente o espião sair dos cenários gélidos da Guerra Fria e respirar novos ares. É um recomeço promissor para uma série que até então mostrara sinais de cansaço.

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