sexta-feira, 28 de março de 2008

EASTWOOD FILMA O MITO E SUA DESTRUIÇÃO

PUBLICADO NA FOLHA DA REGIÃO NO DIA 15 DE JULHO DE 2007


Um soldado caminha como um zumbi por um campo devastado, em meio a barulhos de explosões e gritarias de homens que pedem socorro. A câmera acompanha esse caminhar com um giro em volta desse homem, um giro tão desnorteante quanto o olhar perdido e o caminhar sem direção dele. O que é um herói? Há heroísmo na guerra? São com essas perguntas que Clint Eastwood se debate no transcorrer de “A Conquista da Honra”.

Iwo Jima é uma ilha do Pacífico, mas é também o palco - palavra que dá conta do espetáculo criado pelo governo americano em cima dos seus heróis - no qual soldados japoneses tentam evitar a invasão de soldados norte-americanos, que procuram ali conquistar uma posição estratégica em solo de um dos principais aliados da Alemanha, no meio da Segunda Guerra Mundial.


Diferente de “O Resgate do Soldado Ryan”, dirigido por Steven Spielberg (co-produtor do filme), o filme de Eastwood não concentra esforços em filmar suntuosas batalhas à beira-mar, o que interessa ao cineasta é o ato em que alguns soldados estiraram a bandeira norte-americana após pulverizar um trecho da ilha. Não apenas o ato em si, mas a foto em que esses poucos soldados levantam a bandeira. A foto percorreu todos os EUA, estampada em capas de jornais, fazendo com que os cidadãos americanos vissem a batalha como vencida, coisa que possibilitou ao governo do país justificar mais gastos com a guerra.

Mas o que há de heróico em levantar uma bandeira? “O único heroísmo na guerra é a sobrevivência”, diz o sargento interpretado por Lee Marvin em “Agonia e Glória”, de Samuel Fuller. É esse pensamento fulleriano que Eastwood parece cultuar em seu filme.


Não há heroísmo como também não há vilões - os japoneses são filmados como se fossem invisíveis, ora vemos apenas suas armas ora vultos e corpos desfocados. O heroísmo é imaginário, útil para esconder, por trás de uma fachada vitoriosa, toda a brutalidade, o sangue jorrado e as vidas sacrificadas na guerra.

O filme não tem uma narrativa linear, mas se desenvolve em três tempos: a do filho de um dos “heróis”, que coleta informações com alguns veteranos remanescentes do episódio de Iwo Jima para escrever um livro, a narração do escritor sobre a excursão dos “heróis da bandeira” e as reminiscências da guerra que assombravam os “heróis” enquanto eles excursionavam.


As três histórias parecem se chocar quando, em uma festa de homenagem aos heróis, um deles escolhe uma calda de morango para cobrir um doce em formato de soldados erguendo a bandeira, como na foto eternizada. A imagem mitificada da superioridade norte-americana é encoberta por um liquido vermelho e espesso, igual ao sangue.

Em um só gesto, o heroísmo simbolizado no doce e a rudeza que envolve a realidade da guerra presente no sangue, simbolizado pela calda vermelha de morango. Com esse gesto que o filme de Eastwood se aproxima tanto das fábulas homéricas de John Ford - o homem que sempre imprimiu o mito ao contar a verdade - quanto da iconoclastia de Samuel Fuller - o homem que visitava a História sempre pela porta do fundo. Em um só movimento o mito e sua destruição.


Clint Eastwood é um cineasta contemporâneo, mas consciente de que o cinema do presente se faz ao olhar para o passado. Assim como os discursos atuais proferidos pelas autoridades norte-americanas são meras réplicas dos discursos do passado (“os homens que sacrificam suas vidas para zelar pela segurança da nação”), Eastwood busca no passado, no cinema de Ford e Fuller, o antídoto para enfrentar esses caquéticos discursos.

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