“Capturar gestos e não mãos, expressões e não rostos”. Poderia haver melhor cineasta do que Vincente Minnelli para dar vida a essas linhas de diálogos? Não era exatamente isso que ele realizara no musical “Agora Seremos Felizes” (de 1944), na cena em que um velhinho, ao dançar com sua neta adolescente, é substituído magicamente pelo pretendente da moça? Em plano-seqüência, apenas utilizando o espaço cênico - uma árvore enfeitada no hall do casarão -, com um simples movimento de câmera junto ao movimento dos corpos dos atores, Minnelli dava vida ao tema do filme: o inevitável envelhecimento de uma cidade (St. Louis) e conseqüentemente o processo de renovação que passaria - também fazia ali a passagem do cinema clássico para o moderno.
“Sede de Viver” começa com a música de Miklós Rózsa, que remete ao cinema dos grandes épicos. Cecil B. DeMille talvez. A música é acompanhada de um procedimento que não fica atrás em termos de grandiosidade: um zoom no quadro “O Semeador”, de Van Gogh, o artista biografado no filme. A aproximação ótica é feita em direção ao sol, situado acima do semeador da pintura. Quando todo o quadro cinematográfico é tomado pela figura solar, o galho da árvore pintado sobre a figura se torna uma imensa rachadura. Sobre ela que o título do filme, “Lust for Life”, é inscrito.
Seria este “Sede de Viver” mais uma daquelas biografias que, de tão respeitosa, torna o biografado numa figura divina? A cena que inicia o longa-metragem, passada numa espécie de convento, poderia reforçar a idéia, mas o cineasta Vincente Minnelli logo afasta o espectador dessa impressão. O que se segue é uma reunião de pastores, homens a seguir mais um protocolo. Não há grandiosidade na forma como o diretor desenrola a cena. Os pastores dispensam dois jovens calouros, a porta se abre. Por entre ela se vê Van Gogh (Kirk Douglas) sentado num banco, nervosamente encolhido, esperando a sua vez de ser chamado.
Apenas pelo modo como Douglas se encolhe no banco (de lado e com a cabeça baixa) e na forma como sua atuação se inscreve no centro do quadro (pelo reenquadramento rigoroso feito por Minnelli), nota-se o que a intencionalidade da música grandiloqüente do compositor tocada de início e do zoom: não interessava “pintar” o artista como uma divindade, mas conseguir dar conta, cinematograficamente, da intensidade e peso da vida que recaíram sobre os ombros do jovem Vincent.
Douglas se levanta para conversar com as autoridades religiosas. Quando tem a vez da palavra, o ator gesticula como se pudesse mover o mundo com os seus braços. Argumenta, corporalmente, como se estivesse dando as primeiras pinceladas num painel em branco. Ele quer servir de alguma maneira a humanidade. Ele quer entendê-la. A paixão pela vida o leva para os caminhos tortuosos da arte.
A vida é indissociável da arte, e vice-versa. O protagonista acredita nessa afirmação. E sendo esse o pensamento de Van Gogh, Minnelli faz brilhantemente o uso constante de reproduções dos quadros do pintor. Ele as filma com o intuito de captar os sentimentos conflitantes e as crises emocionais que acompanharam a vida do artista holandês, pondo a seguinte questão: existiriam as cores alegres em “Quarto em Arles” sem a excitação de ter encontrado um novo lugar para morar, longe das convenções do ambiente familiar ou das frivolidades parisienses (onde vivia seu irmão Theo)? Por outro lado, inexistiram crises se a natureza não insistisse em colocar novos elementos a serem trabalhados a cada pincelada de Van Gogh no quadro “Campo de trigos com Corvos”?
Capturar gestos, não mãos. Capturar não rostos, mas expressões. Não seriam essas palavras belas definições para o termo “mise en scène”? Como colocar em cena as angústias do artista, como organizá-las em um cenário e dispô-las no enquadramento? Como fazer tudo isso pelo cinema, sem querer explicar simploriamente o artista, como um psicólogo de botequim?
Primeiro: não parece interessar a Minnelli os passos sórdidos ou as anedotas da vida do artista. Não parece excitá-lo a literalidade oferecida pelas descrições. Se o cineasta acompanha os episódios da vida de Van Gogh, seguindo um rígido itinerário dos lugares habitados por ele, ele não encerra um ponto para começar outro sem antes retirar de cada um desses lugares (a cidadezinha carvoeira, Paris ou Arles) um olhar que ele acredita estar muito próximo do olhado por seu personagem.
Os movimentos temerosos da câmera e a pouca iluminação quando o personagem visita, pela primeira vez, a mina de carvão estão lá porque é essa a forma encontrada por Minnelli de se aproximar dos primeiros desenhos em grafite que Vincent faz no seu aposento, enquanto ainda trabalha como mensageiro evangélico. Se os contornos expressionistas e a explosão de cores caracterizam o trabalho de Van Gogh no período em Arles, Minnelli retoma alguns elementos dos filmes musicais que realizara anos antes para atingir o mesmo êxtase do pintor - a encenação das brigas nos bares, protagonizadas por ciganos exageradamente adornados, por exemplo, parece saída do “O Pirata”, de 1948.
Mas talvez não haja um plano melhor para sintetizar o filme do que o que encerra a obra: após Vincent Van Gogh morrer no leito de um hospital, ao lado do querido irmão Theo, o espectador é levado a um plano, em que a câmera está fixada num dos auto-retratos feitos pelo artista. A câmera se afasta, revelando um mosaico com várias das obras realizadas pelo pintor. Van Gogh morreu miserável, mas sua obra permaneceu e tornou-se gloriosa.
O plano final é o inverso dos créditos iniciais, mas eles se completam. Aquele zoom in inicial, com a inscrição do título sobre a rachadura no sol, deixava entrever que Minnelli pensava no seu personagem como um homem frágil, mas também capaz de deixar fissuras no mundo (no sol). O plano final, a abertura para toda a obra de Van Gogh, mostra a grandiosidade do seu legado.
Nenhum comentário:
Postar um comentário