segunda-feira, 31 de março de 2008

MOSQUETEIROS CONTRA PIRATAS

PUBLICADO NA FOLHA DA REGIÃO NO DIA 22 DE JULHO DE 2007


Escrever sobre obras de outros tempos, filmes de Vincente Minnelli, Sam Peckinpah ou Orson Welles, não é só uma maneira de se redescobri-las como também serve para confrontá-las com o que vem sendo feito no cinema atualmente.

Poderia abordar o último capítulo da saga “Piratas do Caribe”, mas enquanto continuarem a vender essa série como o exemplo do que há de melhor no gênero de aventura, é preferível retomar o filme “Os Três Mosqueteiros”, versão do cineasta George Sidney para a história de Alexandre Dumas, que chegou sorrateiramente nas locadoras.


“Piratas do Caribe” é admirado por muitos pelo seu deboche aparentemente inovador. Seria um produto bacana por não levar a sério sua premissa? Por fazer uma auto-ironia do uso exagerado da computação gráfica? Ou por ter Johnny Depp completamente à vontade no papel do pirata esquisitão Jack Sparrow?

Os pontos supostamente fortes do filme é, na verdade, seu calcanhar de Aquiles. Por trás da falta de seriedade narrativa se esconde uma inabilidade por parte do realizador, Gore Verbinski, de que rumo tomar com o filme - não sabe se alopra de vez ou se satisfaz o público ávido por uma conclusão na historieta.


Por trás da ironia no uso dos efeitos visuais há um filme que não sobrevive sem eles, que no fundo é refém disso tudo. A atuação de Johnny Depp, por sua vez, reflete a zorra que é o filme: ora parece um zumbi punk saído do filme “Dead Man”, de Jim Jarmusch, ora parece uma versão piorada do Edward Mãos de Tesoura e em boa parte do filme parece um dos personagens afeminados de uma fábula kitsch de Pedro Almodóvar.

Contra tudo o que “Piratas do Caribe” representa e em prol de tudo o que ele se propõe existe o filme “Os Três Mosqueteiros”, realizado em 1948 que, com seu vigor estético e narrativo, supera a trilogia que atualmente monopoliza os cinemas brasileiros com seu terceiro capítulo.


O cineasta George Sidney era um dos especialista em filmes musicais. Para não perder o tato, contou com a participação do ator e dançarino Gene Kelly (consagrado por “Cantando na Chuva”) na pele do espadachim D’Artagnan, cavalheiro que se une aos três mais habilidosos mosqueteiros do reino francês para combater as conspirações elaboradas pelo cardeal Richelieu (feito pelo eterno vilão, Vincent Price).

A performance de Gene Kelly é uma esbofeteada na atuação de Depp. Kelly constrói um D’Artagnan que de tão farsesco possibilitou ao cineasta fazê-lo contracenar com cenários exageradamente pintados e mais falsos que ele sem nenhum pudor de querer impor qualquer tipo de realismo.

A cena na qual Gene Kelly, montado em um cavalo com pinta de pônei, ruma para Paris em uma estrada parecida com algum desenho colorido da MGM faz lembrar a cena introdutória do personagem Jack Sparrow no primeiro exemplar de “Piratas do Caribe”, em que Depp aportava o barco se equilibrando na ponta da proa jocosamente, deixando claro o tom do personagem.


Enquanto a entrada de Depp destoa do tom imposto por Verbinski - o ator faz humor da mítica do personagem, mas a cena é conduzida como parte integrante de um suntuoso épico -, em “Os Três Mosqueteiros” a presença do gênero musical colabora muito para que as coisas fluam.

Não há números musicais ou cantorias no filme de George Sidney, mas a graciosidade e o acrobatismo nos movimentos partem de uma coreografia devedora do gênero musical.


A exploração de todos os objetos e espaços que envolvem as cenas, características do gênero, impõe o ritmo de aventura sem com isso abdicar do abstracionismo que envolve o filme.

Abstracionista porque os atores e os cenários não servem para reforçar uma aparência de realidade, são simplesmente cores e formas que se movimentam num ritmo e expressão próprios do cinema. Não há valor psicológico atribuído ao fato de um dos mosqueteiros ser um bêbado, do outro ser vaidoso e de D’Artagnan ser um acrobata.


George Sidney atribuí valores estéticos a essas características, nada mais. O mosqueteiro vaidoso é uma cor que destoa das outras quando se movimenta para enfrentar os inimigos, o bêbado é o corpo que se movimenta cautelosamente, faz com que as cenas não fiquem num único tom, e o acrobata é o responsável por convergir e intensificar as diferenças, é o centro da película.

“Os Três Mosqueteiros” é um filme que de certo modo antecipa a afirmação feita pelo crítico francês Michel Mourlet, que dizia ser o cinema um olhar substituto do nosso a oferecer um mundo correspondente aos nossos desejos.


Enquanto um filme como “Piratas do Caribe” se constrói sob o pretexto de brincar com sua condição de produto de gênero e se asfixia num exercício assexuado de cinema, “Os Três Mosqueteiros” é um filme que mantém a virilidade, capaz de fazer o espectador ver verdade em toda a aparente falsidade, a verdade do cinema.

Quando Gene Kelly observa, às escondidas, uma moça se trocando, ele está ali a representar a virilidade do espectador. Ele observa, suspira e delira. O prazer de D’Artagnan é também o prazer do espectador. O prazer dos olhos.

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