domingo, 16 de março de 2008

QUANDO UM CINEASTA AMA UMA ATRIZ

PUBLICADO NA FOLHA DA REGIÃO NO DIA 17 DE JUNHO DE 2007

Há séculos acredita-se na influência que certas mulheres exerceram sobre o trabalho de muitos artistas. Tal crença faz com que o mito das musas, criado pelos gregos (“as filhas do céu e da terra, habitantes de rios, montanhas e campos, anunciadoras de todas as formas de pensamento”), seja retomado de tempos em tempos. No cinema esse mito se materializou nas películas de vários cineastas. Orson “Cidadão Kane” Welles é um exemplo.


“Quando eu resolvo me fazer de bobo, nada consegue me deter” é a narração de Michael O’Hara que dá início ao filme “A Dama de Shanghai”, de Orson Welles. O fazer-se bobo é a menção do personagem, um marinheiro irlandês, à paixão por Elsa Bannister, uma mulher estonteante e perigosa. Essa narração/confissão é a mais bela declaração de amor que o cineasta Orson Welles poderia fazer a sua esposa, a atriz Rita Hayworth. Para ela o cineasta entregou o papel da mulher fatal, para ela o cineasta dedicou o filme.


Os cabelos longos e escuros que deram fama à Rita Hayworth dão lugar ao corte radical de um louro radiante. Esse ato incentivado por Welles não foi uma resposta de um prodígio mal-criado ao sistema hollywoodiano, que o invejava e que cultuava o estilo tradicional de sua diva, mas sim a demonstração de que um bom artesão pode se arriscar em algumas manobras para tornar ainda mais bela sua escultura. A escultura de Welles era sua mulher.


O cineasta faz o irlandês que vive a caminhar nas sombras e que, de repente, encontra em um parque uma luz que irradia, que o seduz. Essa luz irradia de uma carruagem que O’Hara persegue, após fazer a confissão inicial. Nesta carruagem repousa a beleza, o charme irradiante da loura fatal Elsa Bannister.


O’Hara não demora a perceber que Elsa é uma mulher perigosa - seja por sua formação “duvidosa” em Macau e Shanghai, considerados por O’Hara os piores lugares do mundo, ou pelo total controle que ela parece ter sobre si ao recusar o cigarro oferecido por ele, além de guardá-lo, como recordação, de um modo extremamente sedutor. Ele sabe, mas não resiste pelo mesmo fato que não resistimos à beleza de Hayworth no filme: ela hipnotiza.


A forma como o diretor a coloca em cena e a filma faz com que ela personifique aquela beleza maléfica, que leva os homens ao esgotamento, ao fundo do posso. Um tipo de beleza destrutiva e destruidora, uma beleza impossível de se esquecer.


A paixão, ou convicção estética, de Welles o faz, logo no início, situar o esplendor de Rita Hayworth e o fazê-lo se destacar de todo um mundo decadente (em preto e branco) que a cerca: O’Hara anda por um parque na escuridão, dá de encontro com Elsa e adentra em sua carruagem; a luz se concentra nela, enquanto Welles permanece nas sombras.


E assim a luz permanece até o final da projeção, pois Welles dedica todo o filme a ela: quando as cenas são ensolaradas, Welles a coloca vestida em um maiô preto, dando destaque a sua pele branca e seus cabelos claros; quando as cenas são noturnas, a veste de branco. Ela é o espectro que invade a abertura da íris do cinematografo.


O ápice, porém, se encontra no final da projeção, quando Rita Hayworth encontra-se com Orson Welles para a acerto final da tumultuada relação que os envolve no filme (uma teia de crimes, traições e paixões). Em um parque de diversão, especificamente na sala de espelhos, Welles vê o desfecho trágico de seu súbito romance com Hayworth: em meio a multiplicados reflexos de Hayworth, ela desfalece e morre.


Em luto, O’Hara caminha ao final do filme aliviado e completamente vazio: ele pode retomar sua independência, mas nunca mais tornará a contemplar o irradiar, o esplendor da beleza de uma deusa. De Elsa Bannister, de Rita Hayworth.


Foi o primeiro e único filme de Orson Welles com Rita Hayworth. Foi também o penúltimo filme em terreno norte-americano dele, que depois partiu em exílio pela Europa. O caminhar perdido de O’Hara também o fora o caminhar perdido de Welles até meados da década de 50 - quando retornou aos EUA para fazer “A Marca da Maldade”.

2 comentários:

André Setaro disse...

Bela maneira de explicar "A dama de Shangay" pela relação entre Orson Welles e sua musa Rita Hayworth. Parabéns pelo blog. Está excelente.

Diego Assunção disse...

Obrigado André.