terça-feira, 4 de março de 2008

QUANDO A TV AMEAÇA O CINEMA

PUBLICADO NA FOLHA DA REGIÃO NO DIA 14 DE JANEIRO DE 2007


Há poucas semanas, em uma entrevista para o caderno Ilustrada, da Folha de S. Paulo, o guru dos roteiristas norte-americanos, Robert McKee decretou que as séries de TV dominarão o futuro da narrativa audiovisual, superando o cinema como forma de arte. Se o que ele diz é verdade, isso só o tempo nos dirá, mas é preciso atentar para a seguinte pergunta: quem são os responsáveis pelas séries de TV?

Os textos geralmente ficam a cargo de novatos ou veteranos da televisão (é em nome dos roteiristas que McKee parece se pronunciar), mas fala-se aqui em “narrativa audiovisual”, então responder à pergunta é notar que o que é feito nas séries de TV é muito menos uma aposta na definição de “novos padrões de qualidade” (como McKee também coloca na entrevista), do que a constante recorrência aos velhos talentos do cinema a fim de recolocar as coisas nos seus lugares, já que o cinema industrial parece que se tornou definitivamente um quarto de brinquedos para crianças mimadas (ou o reduto para cineastas medíocres, vide Michael Bay e seus asseclas).

Afinal, quem são os responsáveis pelas séries de TV? É uma pergunta complicada, pois se trata de uma produção em escala industrial, que visa diversos processos até a conclusão da obra (ou produto), mas podem-se avistar algumas evidências: antes da série “24 Horas” definir seu imutável “padrão de qualidade”, determinar as regras que seriam jogadas nas seqüentes temporadas, os produtores recorreram ao cineasta Stephen Hopkins (experiente e competente artesão de filmes de ação, como “Contagem Regressiva”) para responder pelo visual e ritmo que a série se modelaria no transcorrer das temporadas.


Mas o contrário também ocorre. Diretores novatos responsáveis por séries de televisão também são requisitados pelo cinema quando fazem sucesso, como foi o caso de J.J. Abrams, que após a inesperada consagração do seriado “Lost” foi convidado para dirigir a terceira parte da cine-série “Missão Impossível”. A televisão pode ser vista tanto como uma “creche” onde jovens realizadores exercitam e dão os primeiros passos de suas carreiras como serve também de “asilo” para que os veteranos continuem a dar contribuições para a arte da “narrativa visual”.

É inegável que a televisão foi construída sob os esforços de profissionais do cinema. Comediantes que fizeram carreira no cinema, como Groucho Marx, rumavam para a TV e comandavam programas de auditório e cineastas que eram desprestigiados em Hollywood faziam o mesmo trajeto, como foi o caso de Don Weis, realizador do genial e desconhecido “É deste que eu gosto”, musical que pegou carona no sucesso de “Cantando na Chuva” (o filme é desconhecido, mas é regularmente exibido no canal Futura). Weis dirigiu diversos episódios de séries distintas, desde “Batman” (sim, aquele mesmo que passava no SBT) até M*A*S*H e MacGyver.


A televisão foi construída sob a égide do cinema e, mesmo assim, há décadas o cinema vem sendo “ameaçado” pela televisão? É o caso clássico do filho que deseja matar o pai? O italiano Roberto Rossellini, que deixou o cinema nos anos 60 para realizar filmes educativos para TV, mostrou com seu trabalho feito para a TV que a diferença entre os veículos estava apenas na dimensão da tela, nada além. Tal pensamento nem é tão infundado assim, pois se fosse colocada em uma balança uma mini-série televisiva feita por Walter Hill (o faroeste “Rastro Perdido”, lançado recentemente em DVD) junto ao “Missão Impossível III” de J.J Abrams, feito para cinema, a fim de avaliar as qualidades estéticas dos dois, não se demoraria a responder que a televisão é também cinema.

“Ligo a TV e assisto cinema, vou ao cinema e assisto TV”, disse certa vez um perplexo Emir Kusturica (cineasta nascido em Sarajevo). O que ele diz não pode ser considerado exagero, pois enquanto no cinema contemporâneo muitos artistas parecem estar mais preocupados com as espertezas do roteiro recheado de reviravoltas (como no filme “21 Gramas”), nas séries encontram-se premissas que levam os realizadores a encenações rudimentares que, pela falta de dinheiro ou tempo, se assemelham ao bom cinema de gênero, cinema no qual os artistas se expressam de modo puramente visual.


E a TV, substituirá o cinema? É provável que em meio a esses ciclos, nos quais jovens diretores de TV rumam para o cinema e que veteranos do cinema rumam para a TV (TV como creche e asilo), todos saiam ganhando. Talvez os jovens que migrarem para o cinema possam aprender alguns truques com os velhos senhores que chegam à TV para encerrar suas carreiras e possivelmente os veteranos sejam atingidos pelo entusiasmo juvenil e façam de episódios para séries seus melhores trabalhos. A diferença entre os veículos talvez seja mesmo apenas a dimensão, sendo assim, antes de se destruírem, eles se completariam.

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