Sidney Lumet foi um dentre muitos cineastas que firmou carreira nos anos 70 para, nas décadas seguintes, ser esquecido pela indústria hollywoodiana. Diretor iniciado no teatro e na TV, Lumet é reconhecido pelo seu estilo pragmático.
O pragmatismo do cineasta é evidenciado:
a) pelo seu gosto por narrativas transcorridas em tempos curtos. “Um dia de Cão”, narrado praticamente em tempo real, leva a característica ao paroxismo;
b) o interesse de sempre fotografar Nova York do angula mais cru. Das ruas e o distrito policial fétidos do consagrado “Serpico” ao passeio dos amigos que vão ao funeral de um conhecido no obscuro “Grotesca Despedida”;
c) a completa ausência de clichês ao narrar histórias sobre profissionais que geralmente são estereotipados nas telas do cinema, seja o detetive psicopata interpretado por Sean Connery em “Até os Deuses Erram” ou a família de ladrões de “Negócios de Família”.
Por sempre impregnar seus filmes com um senso de urgência, por manter uma afeição pelo folhetinesco, muitos são os que hoje vêem com ressalvas as obras de Lumet, taxando-o como cineasta de um repertório só. Como muitos artistas, Lumet passou do céu ao inferno, de “unanimidade” entre os críticos se tornou um “cineasta sob suspeita”.
A desconfiança é tanta que o último filme do cineasta, “Sob Suspeita”, não chegou às salas de cinema, indo direto para as prateleiras das locadoras. Com o talento questionado e posto em cheque, “Sob Suspeita” chega em boa hora para que se faça uma reavaliação da obra de Sidney Lumet.
A revisão, porém, não parece se restringir ao “além da tela”, pois vendo o filme tem-se a impressão de que o cineasta inflou-o de vários elementos que permeavam muitos de seus filmes anteriores, como se quisesse fazer também um balanço de sua carreira.
A história é inspirada num caso real, do mafioso Giacomo DiNorscio (interpretado por Vin Diesel) que dispensa seus advogados e faz sua própria defesa num julgamento envolvendo outros 19 acusados, serviu de ponto de partida para Sidney Lumet.
Está presente o espaço cênico limitado do tribunal, que serviu de locações em filmes anteriores do cineasta, como no “O Veredicto”, e o caldeirão fervilhando com figuras divergentes (mafiosos avaliados por um júri mesclado por pessoas de etnias distintas), num clima sufocante muito semelhante ao do primeiro filme do diretor, “Doze Homens e uma Sentença”.
Essa “coletânea” tem ainda como referência o herói quixotesco. Se Giacomo DiNorscio não é honesto como o policial de “Serpico”, que vive a trabalhar em meio a uma corja de corruptos, ou louco como o jornalista de “Rede de Intrigas”, que resolve falar tudo o que pensa na televisão, ao menos ele preserva aquela inabalável fé nas suas convicções, característica tão marcante no cinema de Lumet.
O malandro Giacomo se gaba de nunca ter delatado seus amigos à polícia. Passou mais da metade de sua vida na cadeia por causa disso. Talvez seja apenas um sujeito idiota. Talvez seja um inglório herói resistente. Ao final, o sonho do personagem é mesmo ser amado por todos aqueles que o cerca - no caso, os policiais e presos que vivem com ele na cadeia, local onde cumpre uma pena de 30 anos.
A história do personagem do filme se assemelha muito à história de Sidney Lumet. Giacomo é anacrônico para as novas leis mafiosas, assim como Lumet é tido como um dinossauro em Hollywood. São obsoletos, mas conhecem as regras e sabem ditar o ritmo do jogo, colocando-se sempre à frente de seus adversários.
Giacomo sabe que não há muita diferença entre polícia e mafioso. Sabendo também que um julgamento é tido como um palco para as atuações de promotores e advogados, utiliza do seu humor malandro para convencer o júri do impossível, ou seja, de sua inocência.
Lumet não fica atrás. Sabe que Hollywood se tornou num incrível circo de variedades e, com isso, transforma o cenário do tribunal num verdadeiro picadeiro, facilmente identificável pela forma como dispõe os outros dezenove réus em cena, como se cada sessão do julgamento fosse o dia de abertura de um cassino.
O resultado final da reavaliação do balanço feito por Lumet com “Sob Suspeita” termina com saldo positivo, pois confirma que as previsões dos detratores estavam erradas.
É certo que Lumet não é cineasta de uma nota só, tendo trafegado por adaptações ousadas de peças teatrais importantes, como “Equus”, e de obras literárias consagradas, como “Assassinato no Orient Express”. Chegou até a refilmar, corajosamente, o badalado filme “Glória”, de John Cassavetes.
“Cineasta de poucas notas”, talvez seja a definição mais equilibrada e menos diminuidora do seu talento. O que “Sob Suspeita” prova é que mesmo revisitando velhos temas, cenários e personagens, o estilo folhetinesco e lancinante de Lumet, por mais caduco que pareça ser, ainda supera boa parte dos filmes norte-americanos que são feitos atualmente.
2 comentários:
Belo e oportuno texto. É lamentável que são poucos os filmes de Sidney Lumet lançados em DVD no Brasil.
Poucos filmes lançados de uma filmografia tão extensa.
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